Socialismo
Era 1966 inicio o primeiro ano ginasial no Colégio de Aplicação da Faculdade de Filosofia, Ciëncias e Letras da USP na cidade de São Paulo. Era o laboratório pedagógico e local de estágio de futuros professores de ensino secundário formados pela USP.
Entrei nesta escola depois de um exame de admissão, contra minha vontade, que era permanecer na escola judaica em que fiz o ensino primário. Em nossa casa não seguíamos ritos religiosos. A escola em que eu estava não era religiosa, mas era sionista. Havia um processo de educação para nos preparar para Aliah (emigrar para Israel), e alguns colegas meus de classe desta época fizeram esta opção. Acredito que se meu pai não tivesse me tirado desta escola, eu também teria feito esta opção quando crescesse. Bloqueado o meu futuro sionista, abriu-se a possibilidade de um novo caminho.
Em 1967 surgiu a primeira greve em nossa escola, relacionada a uma briga entre a Faculdade de Educação da USP e a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (o Colégio de Aplicação existe hoje sob o comando da Faculdade de Educação). A Faculdade de Educação destituiu o Diretor de nossa escola, que tinha o apoio dos professores da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Os alunos entraram no meio da briga a favor da permanência do Diretor. A forma de apoio foi uma greve e a ocupação da escola. Me posicionei a favor dos grevistas e participei das assembléias diárias. Para pedir a palavra nestas assembléias pedia-se uma inscrição à mesa. Porém, quando chegava a vez de falar devido ao grande número de inscritos, muitas vezes o assunto já era outro. Me arrisquei: pedi a palavra e tive sorte. O assunto em discussão já havia mudado mas tive a oportunidade de fazer uma leitura com críticas ingênuas sobre um manifesto dos alunos que eram contra a greve, que estava começando a circular, que foi muito ovacionado. Ganhei até um beijo de uma menina do clássico (na época o colegial era dividido em clássico, para os que pretendiam cursar ciências humanas e científico para quem pretendia cursar ciências exatas). Gostei de toda aquela novidade e agitação.
Em 1968 começaram as greves universitárias e as passeatas contra a ditadura. Não participei das passeatas, mas acompanhei tudo “debaixo da escada”. Embaixo da escada tinha o mimeógrafo do Diretório Estudantil, e eu e Almir, o encarregado do jornalzinho do Diretório, íamos trazendo as notícias do movimento para dentro da Escola. O Almir estava no científico e estudava a noite. Eu estudava a tarde e pela manhã fazíamos o jornal sobre a direção dos líderes do Diretório que estudavam no período da manhã.
Neste ano iniciou-se minha politização e aproximação com a literatura de esquerda. Sou convidado para participar de um grupo de estudos de judeus, cuja maioria morava no Bom Retiro e tinha estudado nas Escola Sholem Aleichem. Nesta época a comunidade judaica era dividida em duas: a sionista, que ensinava a seus filhos o hebraico e a internacionalista, que ensinava o idiche. O grupo internacionalista morava no Bom Retiro, mas eram mais pobres, mantinham a escola Sholem Aleichem e o teatro TAIB. O grupo sionista havia se mudado em sua maioria para Higienópolis (o “Melhor Retiro”). Para lazer, o grupo sionista frequentava o clube Hebraica e o internacionalista o clube Macabi. Eu era o mais novo do grupo de estudos. Começamos com “O Papel do Homem na História” de Plekhanov e em seguida o “Manifesto do Partido Comunista” de Marx e Engles. Deste grupo de estudo saíram um playboy, um dirigente de uma organização trotskista e um membro do Partidão, o Partido Comunista Brasileiro.
Em 1969, através do Ato Institucional número 5, o Governo fechou o Congresso, criou a censura a imprensa e intensificou a repressão. Na liderança do movimento estudantil a discussão era a de aderir a luta armada, que havia se iniciado em 1968, ou adotar a resistência pacífica, acreditando na força de greves, passeatas e desobediência civil, para acabar com a ditadura. Eu nunca tive dúvidas de que a luta armada era fazer o jogo do adversário, a ditadura militar, que estava muito mais preparada para o confronto violento. A maioria dos líderes do Colégio de Aplicação aderiram à luta armada, criando um vácuo na direção do Diretório Acadêmico, que foi preenchido por um grupo minoritário, o Partidão. O Almir, encarregado do jornal do Diretório, era do Partidão, e o Partidão era contra a luta armada.
Fui convidado a fazer parte da próxima Diretoria. Chapa única, ganhamos a eleição. O Almir era o Presidente, o João o vice e eu o Secretário. O Almir foi preso em abril por ter impresso um jornal clandestino para uma facção da luta armada. Ele imprimia qualquer coisa, pois este era o trabalho que lhe dava de comer. Acabou indo comer de dentro da prisão por uns seis meses. O João assume então a Presidência, mas renuncia em julho, pois tinha que estudar para passar no exame de vestibular. Eu, com 14 anos, na quarta série ginasial, assumi a Presidência do Diretório em julho de 1969. Foi também o começo das minhas atividades clandestinas: distribuir o jornal Resistência em minha escola. A publicação mensal era produzida no Rio de Janeiro, à partir de matérias censuradas na imprensa, por um grupo que mais tarde aderiu à luta armada.
A repressão na Universidade resolveu acabar com o nosso Colégio em 1970. Permaneceu somente como escola primária, que na época estava sobre o comando da Faculdade de Educação. O ginásio e o colégio entraram na rede estadual, com a designação de Colégio Estadual Fidelino de Figueiredo. Nossa tarefa no Diretório era resisitr a este desmantelamento, mantendo atividades como teatro, música, fotografia que deixaram de ser oferecidas pela escola. Outra tarefa era manter as carteirinhas estudantis com idades falsificadas para permitir a entrada do pessoal do colégio e do ginásio em filmes proibidos, num drible contra a censura desatinada. Através das ações do Diretório fiz novas amizades, para as quais passei a ser uma referência em política. Apareceu também um jovem do terceiro colegial, mais velho, que desafiava minha posição de liderança no Diretório. Em julho de 1970, antes de terminar meu mandato, renunciei à Presidência. Este colega passou a ser o Presidente interino até as eleições seguintes, me permitindo dedicar ao que eu achava prioritário naquele momento: trabalhar com o grupo de teatro, e criar um grupo de estudos com mais cinco colegas para estudar marxismo.
Enquanto era Presidente, mantinha ligações com dois partidos: a Polop e o PCB. Enquanto a pessoa da Polop queria vender suas idéias como as únicas verdadeiras do mundo, o contato que tinha com o Partidão era de uma pessoa muito mais madura que estava mais preocupado em abrir minha cabeça que me doutrinar. Através dele recebia a imprensa de vários grupos clandestinos e ele tinha uma visão de que nossa principal missão como garotos de classe média era a de estudar para sermos bons profissionais a serviço da classe operária. Quem iria derrubar a ditadura militar eram os operários e não um bando de estudantes ou guerrilheiros. E eu ouvia isto de um homem mulato, alto, magro e nordestino. Era o José Montenegro de Lima que foi preso em 1975, torturado e assassinado no DOI-CODI, centro de tortura do Exército, e seu corpo nunca recuperado pela família.
Minha admissão no Partidão passava por fazer um curso: ABC do PCB. Tínhamos que ler e discutir uma cartilha que tinha a linha programática do Partido. Fiz este curso na casa do Almir e a Professora era a filha do Prestes e da Olga Benário, como vim a saber anos mais tarde. A idéia de montar o grupo de estudo de marxismo com meus amigos visava a reproduzir as aulas que estava tendo neste curso. Nosso grupo era muito bom, e sempre fomos críticos de tudo. Eu mesmo nunca engoli a revolução em duas etapas: a nacional-democrática e a socialista depois. Esta era uma crítica da Polop ao Partidão que sempre concordei. Um dos membros do nosso grupo, o Clovis Goldemberg, quando discutíamos o livro “Salário, Preço e Lucro” de Marx, apresentou a tese que Marx “havia cagado” pois a história havia demonstrado que ele estava errado quanto ao prognóstico que ele tinha para a pequena burguesia. Depois de muita discussão ele nos convenceu que Marx “cagou”. Com espírito aberto e compromisso de luta pacifica contra a ditadura, nos filiamos todos ao Partidão em meados de 1971.
Nosso grupo só parou de se reunir em 1972, quando fomos todos estudar para passar no exame de vestibular. Esta era a nossa tarefa. Nesta época, conheci outros membros do Partidão, entre eles um velho dirigente que me pediu para ajudá-lo a escrever uma carta de protesto, pelo fato da Prefeitura ter decidido colocar grades nos principais parques infantis da cidade. Ignorando o início do descontrole da violência urbana, ele argumentava sobre o que seria das crianças se nascessem tendo que brincar já cercadas. Era este tipo de gente que eu ia conhecendo, enquanto os jovens que aderiram a luta armada morriam baleados no confronto com a ditadura ou em seus porões, após serem torturados.
Em 1972 participamos da primeira grande iniciativa que envolvia as células do Partidão do Movimento Secundarista e Universitário. Era organizar a comemoração dos 50 anos da Semana de Arte Moderna, como um marco de resistência cultural. Entre outras coisas, discutíamos como revigorar o chorinho e a música Latina-americana no meio estudantil.
Em 1973 entrei na Faculdade de Medicina da USP. Já havia uma militante por lá, e juntos começamos a organizar o Partido na Faculdade e a encontrar uma alternativa para o Centro Acadêmico. Cometemos algums erros, mas em 1975 a chapa que organizamos e apoiamos ganhou a eleição para o Centro Acadêmico. Naquele ano, a influência do Partidão no conjunto dos Centros Acadêmicos seria muito grande, não fossem as prisões efetuadas de setembro a outubro.
Em 1974, a direção do último grupo a favor da luta armada foi dizimada: caiu parte da direção do PC do B e a guerrilha rural do Araguaia foi desbaratada antes mesmo de começar. A repressão se volta contra o Partidão. Apesar de não ter aderido à luta armada, o Partidão representava o inimigo na Guerra Fria, a “embaixada” de Moscou no Brasil. A repressão não teve dificuldades para acabar com o Partidão. Muitos de seus dirigentes tinham uma vida apenas semi-clandestina. Pegaram um deles, torturaram sua mulher e filha na frente dele e ele passou a ser um “cachorro”, um informante em troca de segurança para si e sua família. A queda começa pela gráfica, o coração de uma organização clandestina pacífica, e segue na direção da cabeça, o Comitê Central. Provavelmente, através de informação de pessoas infiltradas no exterior, o exército consegue pegar na fronteira os dirigentes que estavam voltando para o Brasil e os assassinam. A seguir começam a desmembrar o corpo de cima para baixo. Dirigentes torturados vão entregando os militantes para os quais eles davam assistência, ou seja, orientação para a ação política.
Nos fins de 1974 termina a aventura do meu primeiro amor e fico com a impressão que o mundo acabou. Meu Pai me vendo tão triste resolveu me dar um prêmio para me animar: “uma viagem para Londres para você aprender inglês.”. Comprou uma passagem, me levou até o aereoporto e disse: “em caso de emergência ligue para a Embaixada do Brasil na Inglaterra. Aqui está o telefone.” No avião encontrei outros jovens que também estavam indo para Londres estudar inglês nas férias, só que eles estavam em um grupo com tudo definido. Quando descemos no aereoporto e eles foram embora, fiquei sozinho sem saber aonde ir. Já me vi em emergência e liguei do saguão do aereoporto, em um telefone público, para a Embaixada do Brasil. Me pediram para ir para lá e fui muito bem recebido. Havia uma Casa da Cultura do Brasil e neste lugar havia acomodação para estudantes de pós-graduação. Porém, nas férias alguns tinham retornado ao Brasil. Me arrumaram um quarto que dividi com o neto de um Ministro, que não era estudante de pós-graduação, até eu arrumar um novo lugar.
Fiquei fascinado por Londres, assisti a vários filmes que estavam proibidos no Brasil e me inscrevi em um curso de inglês, do sistema público, para estrangeiros a noite. Na segunda semana de aula sentei finalmente para fazer as lições da escola que já estavam se acumulando. Olhei para a janela e me perguntei: “o que estou fazendo aqui na porta da Europa, fechado em um quarto, fazendo lição de casa?” Fechei os cadernos, me despedi do pessoal da Casa da Cultura e peguei o trem para Paris (na época não havia aindo o túnel, e atravessei o Canal da Mancha de barco).
Em Paris sabia que um Professor e amigo, Carlos Corbett, estava com a esposa em mais uma lua de mel do casal. Apareço de repente no hotel em que estavam, me lembro que ele abriu espantado a porta do quarto dele e eles ainda estavam na cama. Só faltou eu deitar na cama no meio deles! Era o próprio aluno chato perseguindo o Professor até Paris! Me acomodei no mesmo hotel e procurei me virar sozinho. Porém, não falava francês. Isto foi virando um problema e o solucionei comprando uma passagem para Lisboa.
Em Lisboa, fui para a casa do Miguel Urbano Rodrigues, comunista português, pai de um amigo meu do Partidão. Quando ele estava no Brasil, na condição de exilado, Miguel era jornalista da Revista Visão. Com a Revolução dos Cravos em 1974 em Portugal, os exilados políticos voltaram e Miguel se tornou editor chefe de um jornal de esquerda em Lisboa. Através de sua orientação, consegui uma acomodação na Residência dos Estudantes da Universidade de Lisboa.
O grupo político dominante na Residência era um grupo maoista cuja sigla era MRPP. O Partidão de lá os chamavam de MR Pum Pum acentuando o caráter de esquerda festiva que era como os caracterizavam. Tinha alguns estudantes do Partidão de lá, o PCP, na Residência, mas eram discretos naquele ambiente. Era janeiro de 1975, governo Vasco Gonçalves, e havia muita agitação. Ambiente perfeito para mim. Frequentei assembléias de condutores de ônibus (que estavam em greve) e de estudantes. As assembléias dos estudantes eram diárias e começava com a votação da agenda: votavam se iam ou não discutir certos ítens. A discussão sobre o que iam discutir levava horas.
De noite ia para a casa do Miguel Urbano. Cheguei até a dar um palpíte sobre um título para uma matéria que ele tinha escrito e que ele acatou. A casa dele vivia cheia de gente e de discussões. Frequentava estas conversas um jovem jornalista barbudo brasileiro, desconhecido na época: o Fernando de Moraes, que viria a ser futuro deputado, escritor consagrado, e Secretário de Educação do Estado em São Paulo. Saimos juntos por uma noite e ele me contou que estava de passagem para Lisboa para ir a Cuba via Madri escrever uma reportagem do que viria a ser o livro, campeão de vendas, “A Ilha”. Perguntou se eu queria ir com ele (ou eu perguntei se poderia ir com ele), mas que para isto eu precisava mandar meu passaporte para a Embaixada da Espanha para conseguir um visto especial já que era proibido para brasileiros ir a Cuba. Iria infligir uma lei brasileira. Como era militante, fiquei com medo que caso descoberto a minha presença em Cuba, de ser preso na minha volta ao Brasil. Ele tinha o respaldo da Revista em que trabalhava. Perdi a oportunidade de participar desta aventura e conhecer melhor o Fernando de Moraes.
Dois meses depois, volto ao Brasil e meu Pai me pergunta em inglês como tinha sido meus estudos em Londres. Eu repondo em sotaque de Portugal: “sabe pá, a bicha era comprida, eu não aguentei esperar e fui pra Purtugal.”
No Brasil, enquanto as organizações da luta armada aprendiam que deveriam resistir à tortura, nós aprendemos que a melhor defesa era nossa inserção no movimento de massas. Quando a repressão nos atingisse, a sociedade teria que sentir que perdeu uma parte de seu corpo e deveria reagir contra esta perda. Foi o que aconteceu em outubro de 1975. A repressão não estava preparada para as prisões em massa que realizaram. De repente eles tinham mais nomes para prender que pessoas para irem prendê-las. Prenderam pessoas sem importância na organização permitindo que dirigentes escapassem. Tiveram que abrir delegacias de polícia antes de estarem prontas para acomodar tantos presos. Mataram alguns em “acidentes de trabalho” na tortura. De um tenente da polícia militar, poucos ficaram sabendo, mas quando mataram Herzog, jornalista judeu, editor do jornal da TV Cultura que pertence ao Estado, ex-radialista da BBC de Londres, a sociedade reagiu.
Reagindo à morte de Herzog, a Universidade entrou em greve geral e a Igreja tomou a iniciativa de realizar uma missa ecumênica na Sé, que contou com a presença de 8 mil pessoas. Dois anos antes, Alexandre Vannuchi, um estudante de geologia e da Direção de seu Centro Acadêmico, morreu após tortura. Não era o primeiro, mas nós universitários do Partidão, em conjunto com a Igreja Católica, organizamos uma missa ecumênica na Catedral da Sé. Esta mesma ação política da Igreja foi aplicada para nos ajudar em 1975.
O Presidente Geisel veio a São Paulo e ameaçou o Comandante do II Exército com a demissão, caso houvesse um próximo cadáver. Cinco meses depois, um novo cadáver, foi morto o operário Manoel Fiel Filho. O Comandante é destituído e iniciou-se uma crise militar que culminou com a demissão do Ministro do Exército e a vitória, entre os militares, da linha a favor do fim da ditadura. Em 1976, Figueiredo é indicado presidente do Brasil, como o último militar do ciclo da ditadura e jura “fazer deste País uma Democracia. E eu prendo e arrebento quem for contra.”
Eu estava no DOI-CODI quando Herzog morreu. Em 1975, antes da entrada de Figueiredo no Governo, enquanto estava no terceiro ano da Faculdade, mais pessoas próximas de mim estavam sendo presas a cada dia. Nós, universitários do Partidão em São Paulo, sabíamos que poderíamos ser os próximos. Nosso assistente para a Universidade teve a idéia de lançar uma chapa para representantes dos alunos no Conselho Universitário, e eu foi um deles. Fizemos muita propaganda e percorri várias classes em diferentes Faculdades. Este é um exemplo de como reagimos à onda de prisões. Antes das eleições do Conselho Umiversitário acabei sendo preso.
Soube que seria a minha vez, quando foi preso um colega de Faculdade, o Ubiratan de Paula Santos, o qual eu tinha introduzido ao Partidão. Me encontrei com um amigo da época do Colégio de Aplicação que estudava na Politécnica, o Allen Habert, e ele também sabia de outras prisões de companheiros. Ficou claro que todos os nomes do Comitê Universitário estavam abertos. Ele foi acampar e apareceu um ano depois. Na época, meu pai era o Diretor da Faculdade de Odontologia da USP, e me sugeriu a seguinte estratégia: eu iria me entragar ao DOI-CODI, mas com estilo: chegaria de carro oficial, com o Reitor da Universidade, para uma audiência com o comandante do II Exército. Meu pai julgava que, nestas circunstâncias, iriam me soltar logo. Eu achei uma ótima oportunidade de envolver o Reitor na defesa de todos os estudantes e professores presos. E assim foi feito. Fui preso na sala do Comandante. Saí de lá escoltado, me puseram no banco de traz no carro da Polícia, deitado no chão, os pés dos soldados em cima de mim.
A tortura tem três fases: a psicológica, a física e a colaborativa. Na fase “psicológica” te colocam um capuz preto para você não enchergar nada e perder o senso de direção e localização. Ou te deixam nu ou te colocam um macacão. Nunca se dirigem a você pelo seu nome e de vez em quando te chingam, te empurram ou dão uma palmatória. É comum ficar em um lugar onde se escutam os gritos dos que estão sendo torturados. Te deixam assim uns dois dias, sem comer. Ao pedir água ou ir ao banheiro te atendem mas sempre chingando e empurrando. Depois de uns dois ou três dias começa o interrogatório e a fase “física”. Na fase “física” te tiram o capuz e te colocam em um quarto sem janelas com os devidos aparelhos de tortura que é a “pimentinha” (uma máquina de choque elétrico que amplia a voltagem conforme a rotação da manivela) e um tanque com água para as sessões de afogamento. Há também a “cadeira do dragão”, que não fui apresentado, mas me relataram ser uma máquina de choque elétrico, onde o indivíduo fica amarrado na cadeira. E também tinha o pau de arara, um cabo de vassoura sustentado por cavaletes, onde te dependuram pelos joelhos, com os punhados amarrados por trás, e a cabeça pendente e a bunda exposta para facilitar o trabalho dos torturadores. No meu caso, o interragatório foi simples. Me fizeram perguntas, me deram uns tapas nos ouvidos, e viram que eu não estava colaborando e estava muito tranquilo. Me colocaram em uma solitária por alguns dias. No próximo interragatório eu tive companhia. Trouxeram o Dirigente do Comitê Universitário do Partido, que foi me orientando a dizer tudo, não bancar o besta e assinar os papéis que eles quizessem, pois já haviam machucado gente demais. Falei então o que eles queriam ouvir, consegui esconder uma base que eles não sabiam da existência e que eu dava assistência e passei para a fase seguinte.
Enquanto esperava ir para a fase seguinte o “omelete foi feito” como disse um dos policiais torturadores. Herzog tinha morrido nos primeiros choques e tudo mudou deste dia em diante. Fui ainda interrogado no dia seguinte, por um oficial à paisana que, numa conversa tipo pai para filho me aconselhou a me afastar destes comunistas, que eles (os militares) já tinham matado todos os dirigentes e que “ontem matamos um aqui dentro”. Fiz a papelada da fase “colaborativa”, que nada mais é do que escrever a confissão. A seguir fui encaminhado para o DOPS, a delegacia de presos políticos, onde fui preso legalmente pois até então estava “desaparecido”.
Os planos de meu pai não eram esses. Achava que eu iria sair logo. Com o assassinato de Vladimir Herzog, também professor da USP, preso após ter se apresentado espontaneamente ao Exército, meu pai acabou inventando um plano para tentar me tirar da prisão. Pediu a interdição de um conhecido do meu cunhado que fazia parte de um grupo de segurança da coletividade judaica em São Paulo. Este acertou com os militares a minha libertação e não ida a julgamento, desde que eu servisse como testemunha de acusação contra um dos meus companheiros, o Sergio Gomes. Colocaram minha mãe e minha irmã para me fazerem a proposta. Quando entendi do que se tratava, olhei para minha irmã e disse que me chocava muito vê-la participando desta proposta. Ela caiu em si e puxou minha mãe para fora da sala. Eu ainda tive que ouvir umas babaquices dos policiais envolvidos na negociação, de que eu era comunista mesmo, e voltei para a cela, orgulhoso mas chorando. Na primeira visita que meu pai me fez na cadeia, ele me pediu desculpas por ter agido daquela forma e que eu tinha feito muito bem de não ter aceitado aquela negociação. Foi a única vez que eu vi meu pai pedir desculpas por algo que ele fêz.
Para mim, o resto da prisão foi uma bela escola de comunismo. Vivíamos 45 pessoas divididas em cinco celas. Havia uma dispensa coletiva, uma escola para o ensino supletivo, uma oficina para realizar artesanato em couro - para arrecadar fundos para aqueles que tinham que continuar a sustentar suas famílias, o jornal oral “O Parcial” e muita conversa paralela. Eu dormia no teto de uma cama beliche a uns 50 cm do telhado. Este “filhinho de papai” conheceu dirigentes operários, líderes de organizações de camponeses, ex-deputados, ex-vereadores, enfim, um mundo que antes desconhecia e que só pertencia ao meu imaginário. Um dos presos era o José Ferreira da Silva, o Frei Chico, irmão do Lula, e numa visita de fim de semana dos parentes é que tive meu primeiro contato com quem viria a ser o Presidente do Brasil.
Em fins de 1975 sai da prisão meio perturbado. Me sentia mais seguro e feliz lá dentro do que fora. As feras estavam soltas e os homens estavam presos. A vida tomou rumos estranhos, e meus pais resolveram controlar minha vida. A mulher que eu gostava era uma colega do Partido, que fugiu para o exterior, e eu só fui vê-la novamente 5 anos depois, com a Anistia aos presos políticos promulgada pelo Governo em 1980. Em 1976, entrei em depressão e quase que perco o ano na Faculdade. Prometi ao professor que, se me desse a chance de seguir adiante, iria fazer saúde pública, sem arriscar a vida de nenhum paciente. Passei de ano e fui fazer saúde pública como especialização.
A prisão provocou alguns efeitos inesperados. Fui procurado pelo Presidente da Associação de Servidores do Hospital das Clínicas, o HC, que se apresentou como um comunista perdido, e que estava feliz de saber que havia estudantes do Partidão tão perto. Escrevemos uma longa entrevista com ele, que foi publicada no jornal do Centro Acadêmico e distribuída para todos os servidores do HC. A Associação não tinha um jornal próprio. Em 1976 este dirigente organizou a primeira greve de funcionários públicos desde 1969 reivindicando aumento salarial. A greve foi massiva, muito bem organizada, vitoriosa e aquela entrevista foi o início do processo.
Era 1966 inicio o primeiro ano ginasial no Colégio de Aplicação da Faculdade de Filosofia, Ciëncias e Letras da USP na cidade de São Paulo. Era o laboratório pedagógico e local de estágio de futuros professores de ensino secundário formados pela USP.
Entrei nesta escola depois de um exame de admissão, contra minha vontade, que era permanecer na escola judaica em que fiz o ensino primário. Em nossa casa não seguíamos ritos religiosos. A escola em que eu estava não era religiosa, mas era sionista. Havia um processo de educação para nos preparar para Aliah (emigrar para Israel), e alguns colegas meus de classe desta época fizeram esta opção. Acredito que se meu pai não tivesse me tirado desta escola, eu também teria feito esta opção quando crescesse. Bloqueado o meu futuro sionista, abriu-se a possibilidade de um novo caminho.
Em 1967 surgiu a primeira greve em nossa escola, relacionada a uma briga entre a Faculdade de Educação da USP e a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (o Colégio de Aplicação existe hoje sob o comando da Faculdade de Educação). A Faculdade de Educação destituiu o Diretor de nossa escola, que tinha o apoio dos professores da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Os alunos entraram no meio da briga a favor da permanência do Diretor. A forma de apoio foi uma greve e a ocupação da escola. Me posicionei a favor dos grevistas e participei das assembléias diárias. Para pedir a palavra nestas assembléias pedia-se uma inscrição à mesa. Porém, quando chegava a vez de falar devido ao grande número de inscritos, muitas vezes o assunto já era outro. Me arrisquei: pedi a palavra e tive sorte. O assunto em discussão já havia mudado mas tive a oportunidade de fazer uma leitura com críticas ingênuas sobre um manifesto dos alunos que eram contra a greve, que estava começando a circular, que foi muito ovacionado. Ganhei até um beijo de uma menina do clássico (na época o colegial era dividido em clássico, para os que pretendiam cursar ciências humanas e científico para quem pretendia cursar ciências exatas). Gostei de toda aquela novidade e agitação.
Em 1968 começaram as greves universitárias e as passeatas contra a ditadura. Não participei das passeatas, mas acompanhei tudo “debaixo da escada”. Embaixo da escada tinha o mimeógrafo do Diretório Estudantil, e eu e Almir, o encarregado do jornalzinho do Diretório, íamos trazendo as notícias do movimento para dentro da Escola. O Almir estava no científico e estudava a noite. Eu estudava a tarde e pela manhã fazíamos o jornal sobre a direção dos líderes do Diretório que estudavam no período da manhã.
Neste ano iniciou-se minha politização e aproximação com a literatura de esquerda. Sou convidado para participar de um grupo de estudos de judeus, cuja maioria morava no Bom Retiro e tinha estudado nas Escola Sholem Aleichem. Nesta época a comunidade judaica era dividida em duas: a sionista, que ensinava a seus filhos o hebraico e a internacionalista, que ensinava o idiche. O grupo internacionalista morava no Bom Retiro, mas eram mais pobres, mantinham a escola Sholem Aleichem e o teatro TAIB. O grupo sionista havia se mudado em sua maioria para Higienópolis (o “Melhor Retiro”). Para lazer, o grupo sionista frequentava o clube Hebraica e o internacionalista o clube Macabi. Eu era o mais novo do grupo de estudos. Começamos com “O Papel do Homem na História” de Plekhanov e em seguida o “Manifesto do Partido Comunista” de Marx e Engles. Deste grupo de estudo saíram um playboy, um dirigente de uma organização trotskista e um membro do Partidão, o Partido Comunista Brasileiro.
Em 1969, através do Ato Institucional número 5, o Governo fechou o Congresso, criou a censura a imprensa e intensificou a repressão. Na liderança do movimento estudantil a discussão era a de aderir a luta armada, que havia se iniciado em 1968, ou adotar a resistência pacífica, acreditando na força de greves, passeatas e desobediência civil, para acabar com a ditadura. Eu nunca tive dúvidas de que a luta armada era fazer o jogo do adversário, a ditadura militar, que estava muito mais preparada para o confronto violento. A maioria dos líderes do Colégio de Aplicação aderiram à luta armada, criando um vácuo na direção do Diretório Acadêmico, que foi preenchido por um grupo minoritário, o Partidão. O Almir, encarregado do jornal do Diretório, era do Partidão, e o Partidão era contra a luta armada.
Fui convidado a fazer parte da próxima Diretoria. Chapa única, ganhamos a eleição. O Almir era o Presidente, o João o vice e eu o Secretário. O Almir foi preso em abril por ter impresso um jornal clandestino para uma facção da luta armada. Ele imprimia qualquer coisa, pois este era o trabalho que lhe dava de comer. Acabou indo comer de dentro da prisão por uns seis meses. O João assume então a Presidência, mas renuncia em julho, pois tinha que estudar para passar no exame de vestibular. Eu, com 14 anos, na quarta série ginasial, assumi a Presidência do Diretório em julho de 1969. Foi também o começo das minhas atividades clandestinas: distribuir o jornal Resistência em minha escola. A publicação mensal era produzida no Rio de Janeiro, à partir de matérias censuradas na imprensa, por um grupo que mais tarde aderiu à luta armada.
A repressão na Universidade resolveu acabar com o nosso Colégio em 1970. Permaneceu somente como escola primária, que na época estava sobre o comando da Faculdade de Educação. O ginásio e o colégio entraram na rede estadual, com a designação de Colégio Estadual Fidelino de Figueiredo. Nossa tarefa no Diretório era resisitr a este desmantelamento, mantendo atividades como teatro, música, fotografia que deixaram de ser oferecidas pela escola. Outra tarefa era manter as carteirinhas estudantis com idades falsificadas para permitir a entrada do pessoal do colégio e do ginásio em filmes proibidos, num drible contra a censura desatinada. Através das ações do Diretório fiz novas amizades, para as quais passei a ser uma referência em política. Apareceu também um jovem do terceiro colegial, mais velho, que desafiava minha posição de liderança no Diretório. Em julho de 1970, antes de terminar meu mandato, renunciei à Presidência. Este colega passou a ser o Presidente interino até as eleições seguintes, me permitindo dedicar ao que eu achava prioritário naquele momento: trabalhar com o grupo de teatro, e criar um grupo de estudos com mais cinco colegas para estudar marxismo.
Enquanto era Presidente, mantinha ligações com dois partidos: a Polop e o PCB. Enquanto a pessoa da Polop queria vender suas idéias como as únicas verdadeiras do mundo, o contato que tinha com o Partidão era de uma pessoa muito mais madura que estava mais preocupado em abrir minha cabeça que me doutrinar. Através dele recebia a imprensa de vários grupos clandestinos e ele tinha uma visão de que nossa principal missão como garotos de classe média era a de estudar para sermos bons profissionais a serviço da classe operária. Quem iria derrubar a ditadura militar eram os operários e não um bando de estudantes ou guerrilheiros. E eu ouvia isto de um homem mulato, alto, magro e nordestino. Era o José Montenegro de Lima que foi preso em 1975, torturado e assassinado no DOI-CODI, centro de tortura do Exército, e seu corpo nunca recuperado pela família.
Minha admissão no Partidão passava por fazer um curso: ABC do PCB. Tínhamos que ler e discutir uma cartilha que tinha a linha programática do Partido. Fiz este curso na casa do Almir e a Professora era a filha do Prestes e da Olga Benário, como vim a saber anos mais tarde. A idéia de montar o grupo de estudo de marxismo com meus amigos visava a reproduzir as aulas que estava tendo neste curso. Nosso grupo era muito bom, e sempre fomos críticos de tudo. Eu mesmo nunca engoli a revolução em duas etapas: a nacional-democrática e a socialista depois. Esta era uma crítica da Polop ao Partidão que sempre concordei. Um dos membros do nosso grupo, o Clovis Goldemberg, quando discutíamos o livro “Salário, Preço e Lucro” de Marx, apresentou a tese que Marx “havia cagado” pois a história havia demonstrado que ele estava errado quanto ao prognóstico que ele tinha para a pequena burguesia. Depois de muita discussão ele nos convenceu que Marx “cagou”. Com espírito aberto e compromisso de luta pacifica contra a ditadura, nos filiamos todos ao Partidão em meados de 1971.
Nosso grupo só parou de se reunir em 1972, quando fomos todos estudar para passar no exame de vestibular. Esta era a nossa tarefa. Nesta época, conheci outros membros do Partidão, entre eles um velho dirigente que me pediu para ajudá-lo a escrever uma carta de protesto, pelo fato da Prefeitura ter decidido colocar grades nos principais parques infantis da cidade. Ignorando o início do descontrole da violência urbana, ele argumentava sobre o que seria das crianças se nascessem tendo que brincar já cercadas. Era este tipo de gente que eu ia conhecendo, enquanto os jovens que aderiram a luta armada morriam baleados no confronto com a ditadura ou em seus porões, após serem torturados.
Em 1972 participamos da primeira grande iniciativa que envolvia as células do Partidão do Movimento Secundarista e Universitário. Era organizar a comemoração dos 50 anos da Semana de Arte Moderna, como um marco de resistência cultural. Entre outras coisas, discutíamos como revigorar o chorinho e a música Latina-americana no meio estudantil.
Em 1973 entrei na Faculdade de Medicina da USP. Já havia uma militante por lá, e juntos começamos a organizar o Partido na Faculdade e a encontrar uma alternativa para o Centro Acadêmico. Cometemos algums erros, mas em 1975 a chapa que organizamos e apoiamos ganhou a eleição para o Centro Acadêmico. Naquele ano, a influência do Partidão no conjunto dos Centros Acadêmicos seria muito grande, não fossem as prisões efetuadas de setembro a outubro.
Em 1974, a direção do último grupo a favor da luta armada foi dizimada: caiu parte da direção do PC do B e a guerrilha rural do Araguaia foi desbaratada antes mesmo de começar. A repressão se volta contra o Partidão. Apesar de não ter aderido à luta armada, o Partidão representava o inimigo na Guerra Fria, a “embaixada” de Moscou no Brasil. A repressão não teve dificuldades para acabar com o Partidão. Muitos de seus dirigentes tinham uma vida apenas semi-clandestina. Pegaram um deles, torturaram sua mulher e filha na frente dele e ele passou a ser um “cachorro”, um informante em troca de segurança para si e sua família. A queda começa pela gráfica, o coração de uma organização clandestina pacífica, e segue na direção da cabeça, o Comitê Central. Provavelmente, através de informação de pessoas infiltradas no exterior, o exército consegue pegar na fronteira os dirigentes que estavam voltando para o Brasil e os assassinam. A seguir começam a desmembrar o corpo de cima para baixo. Dirigentes torturados vão entregando os militantes para os quais eles davam assistência, ou seja, orientação para a ação política.
Nos fins de 1974 termina a aventura do meu primeiro amor e fico com a impressão que o mundo acabou. Meu Pai me vendo tão triste resolveu me dar um prêmio para me animar: “uma viagem para Londres para você aprender inglês.”. Comprou uma passagem, me levou até o aereoporto e disse: “em caso de emergência ligue para a Embaixada do Brasil na Inglaterra. Aqui está o telefone.” No avião encontrei outros jovens que também estavam indo para Londres estudar inglês nas férias, só que eles estavam em um grupo com tudo definido. Quando descemos no aereoporto e eles foram embora, fiquei sozinho sem saber aonde ir. Já me vi em emergência e liguei do saguão do aereoporto, em um telefone público, para a Embaixada do Brasil. Me pediram para ir para lá e fui muito bem recebido. Havia uma Casa da Cultura do Brasil e neste lugar havia acomodação para estudantes de pós-graduação. Porém, nas férias alguns tinham retornado ao Brasil. Me arrumaram um quarto que dividi com o neto de um Ministro, que não era estudante de pós-graduação, até eu arrumar um novo lugar.
Fiquei fascinado por Londres, assisti a vários filmes que estavam proibidos no Brasil e me inscrevi em um curso de inglês, do sistema público, para estrangeiros a noite. Na segunda semana de aula sentei finalmente para fazer as lições da escola que já estavam se acumulando. Olhei para a janela e me perguntei: “o que estou fazendo aqui na porta da Europa, fechado em um quarto, fazendo lição de casa?” Fechei os cadernos, me despedi do pessoal da Casa da Cultura e peguei o trem para Paris (na época não havia aindo o túnel, e atravessei o Canal da Mancha de barco).
Em Paris sabia que um Professor e amigo, Carlos Corbett, estava com a esposa em mais uma lua de mel do casal. Apareço de repente no hotel em que estavam, me lembro que ele abriu espantado a porta do quarto dele e eles ainda estavam na cama. Só faltou eu deitar na cama no meio deles! Era o próprio aluno chato perseguindo o Professor até Paris! Me acomodei no mesmo hotel e procurei me virar sozinho. Porém, não falava francês. Isto foi virando um problema e o solucionei comprando uma passagem para Lisboa.
Em Lisboa, fui para a casa do Miguel Urbano Rodrigues, comunista português, pai de um amigo meu do Partidão. Quando ele estava no Brasil, na condição de exilado, Miguel era jornalista da Revista Visão. Com a Revolução dos Cravos em 1974 em Portugal, os exilados políticos voltaram e Miguel se tornou editor chefe de um jornal de esquerda em Lisboa. Através de sua orientação, consegui uma acomodação na Residência dos Estudantes da Universidade de Lisboa.
O grupo político dominante na Residência era um grupo maoista cuja sigla era MRPP. O Partidão de lá os chamavam de MR Pum Pum acentuando o caráter de esquerda festiva que era como os caracterizavam. Tinha alguns estudantes do Partidão de lá, o PCP, na Residência, mas eram discretos naquele ambiente. Era janeiro de 1975, governo Vasco Gonçalves, e havia muita agitação. Ambiente perfeito para mim. Frequentei assembléias de condutores de ônibus (que estavam em greve) e de estudantes. As assembléias dos estudantes eram diárias e começava com a votação da agenda: votavam se iam ou não discutir certos ítens. A discussão sobre o que iam discutir levava horas.
De noite ia para a casa do Miguel Urbano. Cheguei até a dar um palpíte sobre um título para uma matéria que ele tinha escrito e que ele acatou. A casa dele vivia cheia de gente e de discussões. Frequentava estas conversas um jovem jornalista barbudo brasileiro, desconhecido na época: o Fernando de Moraes, que viria a ser futuro deputado, escritor consagrado, e Secretário de Educação do Estado em São Paulo. Saimos juntos por uma noite e ele me contou que estava de passagem para Lisboa para ir a Cuba via Madri escrever uma reportagem do que viria a ser o livro, campeão de vendas, “A Ilha”. Perguntou se eu queria ir com ele (ou eu perguntei se poderia ir com ele), mas que para isto eu precisava mandar meu passaporte para a Embaixada da Espanha para conseguir um visto especial já que era proibido para brasileiros ir a Cuba. Iria infligir uma lei brasileira. Como era militante, fiquei com medo que caso descoberto a minha presença em Cuba, de ser preso na minha volta ao Brasil. Ele tinha o respaldo da Revista em que trabalhava. Perdi a oportunidade de participar desta aventura e conhecer melhor o Fernando de Moraes.
Dois meses depois, volto ao Brasil e meu Pai me pergunta em inglês como tinha sido meus estudos em Londres. Eu repondo em sotaque de Portugal: “sabe pá, a bicha era comprida, eu não aguentei esperar e fui pra Purtugal.”
No Brasil, enquanto as organizações da luta armada aprendiam que deveriam resistir à tortura, nós aprendemos que a melhor defesa era nossa inserção no movimento de massas. Quando a repressão nos atingisse, a sociedade teria que sentir que perdeu uma parte de seu corpo e deveria reagir contra esta perda. Foi o que aconteceu em outubro de 1975. A repressão não estava preparada para as prisões em massa que realizaram. De repente eles tinham mais nomes para prender que pessoas para irem prendê-las. Prenderam pessoas sem importância na organização permitindo que dirigentes escapassem. Tiveram que abrir delegacias de polícia antes de estarem prontas para acomodar tantos presos. Mataram alguns em “acidentes de trabalho” na tortura. De um tenente da polícia militar, poucos ficaram sabendo, mas quando mataram Herzog, jornalista judeu, editor do jornal da TV Cultura que pertence ao Estado, ex-radialista da BBC de Londres, a sociedade reagiu.
Reagindo à morte de Herzog, a Universidade entrou em greve geral e a Igreja tomou a iniciativa de realizar uma missa ecumênica na Sé, que contou com a presença de 8 mil pessoas. Dois anos antes, Alexandre Vannuchi, um estudante de geologia e da Direção de seu Centro Acadêmico, morreu após tortura. Não era o primeiro, mas nós universitários do Partidão, em conjunto com a Igreja Católica, organizamos uma missa ecumênica na Catedral da Sé. Esta mesma ação política da Igreja foi aplicada para nos ajudar em 1975.
O Presidente Geisel veio a São Paulo e ameaçou o Comandante do II Exército com a demissão, caso houvesse um próximo cadáver. Cinco meses depois, um novo cadáver, foi morto o operário Manoel Fiel Filho. O Comandante é destituído e iniciou-se uma crise militar que culminou com a demissão do Ministro do Exército e a vitória, entre os militares, da linha a favor do fim da ditadura. Em 1976, Figueiredo é indicado presidente do Brasil, como o último militar do ciclo da ditadura e jura “fazer deste País uma Democracia. E eu prendo e arrebento quem for contra.”
Eu estava no DOI-CODI quando Herzog morreu. Em 1975, antes da entrada de Figueiredo no Governo, enquanto estava no terceiro ano da Faculdade, mais pessoas próximas de mim estavam sendo presas a cada dia. Nós, universitários do Partidão em São Paulo, sabíamos que poderíamos ser os próximos. Nosso assistente para a Universidade teve a idéia de lançar uma chapa para representantes dos alunos no Conselho Universitário, e eu foi um deles. Fizemos muita propaganda e percorri várias classes em diferentes Faculdades. Este é um exemplo de como reagimos à onda de prisões. Antes das eleições do Conselho Umiversitário acabei sendo preso.
Soube que seria a minha vez, quando foi preso um colega de Faculdade, o Ubiratan de Paula Santos, o qual eu tinha introduzido ao Partidão. Me encontrei com um amigo da época do Colégio de Aplicação que estudava na Politécnica, o Allen Habert, e ele também sabia de outras prisões de companheiros. Ficou claro que todos os nomes do Comitê Universitário estavam abertos. Ele foi acampar e apareceu um ano depois. Na época, meu pai era o Diretor da Faculdade de Odontologia da USP, e me sugeriu a seguinte estratégia: eu iria me entragar ao DOI-CODI, mas com estilo: chegaria de carro oficial, com o Reitor da Universidade, para uma audiência com o comandante do II Exército. Meu pai julgava que, nestas circunstâncias, iriam me soltar logo. Eu achei uma ótima oportunidade de envolver o Reitor na defesa de todos os estudantes e professores presos. E assim foi feito. Fui preso na sala do Comandante. Saí de lá escoltado, me puseram no banco de traz no carro da Polícia, deitado no chão, os pés dos soldados em cima de mim.
A tortura tem três fases: a psicológica, a física e a colaborativa. Na fase “psicológica” te colocam um capuz preto para você não enchergar nada e perder o senso de direção e localização. Ou te deixam nu ou te colocam um macacão. Nunca se dirigem a você pelo seu nome e de vez em quando te chingam, te empurram ou dão uma palmatória. É comum ficar em um lugar onde se escutam os gritos dos que estão sendo torturados. Te deixam assim uns dois dias, sem comer. Ao pedir água ou ir ao banheiro te atendem mas sempre chingando e empurrando. Depois de uns dois ou três dias começa o interrogatório e a fase “física”. Na fase “física” te tiram o capuz e te colocam em um quarto sem janelas com os devidos aparelhos de tortura que é a “pimentinha” (uma máquina de choque elétrico que amplia a voltagem conforme a rotação da manivela) e um tanque com água para as sessões de afogamento. Há também a “cadeira do dragão”, que não fui apresentado, mas me relataram ser uma máquina de choque elétrico, onde o indivíduo fica amarrado na cadeira. E também tinha o pau de arara, um cabo de vassoura sustentado por cavaletes, onde te dependuram pelos joelhos, com os punhados amarrados por trás, e a cabeça pendente e a bunda exposta para facilitar o trabalho dos torturadores. No meu caso, o interragatório foi simples. Me fizeram perguntas, me deram uns tapas nos ouvidos, e viram que eu não estava colaborando e estava muito tranquilo. Me colocaram em uma solitária por alguns dias. No próximo interragatório eu tive companhia. Trouxeram o Dirigente do Comitê Universitário do Partido, que foi me orientando a dizer tudo, não bancar o besta e assinar os papéis que eles quizessem, pois já haviam machucado gente demais. Falei então o que eles queriam ouvir, consegui esconder uma base que eles não sabiam da existência e que eu dava assistência e passei para a fase seguinte.
Enquanto esperava ir para a fase seguinte o “omelete foi feito” como disse um dos policiais torturadores. Herzog tinha morrido nos primeiros choques e tudo mudou deste dia em diante. Fui ainda interrogado no dia seguinte, por um oficial à paisana que, numa conversa tipo pai para filho me aconselhou a me afastar destes comunistas, que eles (os militares) já tinham matado todos os dirigentes e que “ontem matamos um aqui dentro”. Fiz a papelada da fase “colaborativa”, que nada mais é do que escrever a confissão. A seguir fui encaminhado para o DOPS, a delegacia de presos políticos, onde fui preso legalmente pois até então estava “desaparecido”.
Os planos de meu pai não eram esses. Achava que eu iria sair logo. Com o assassinato de Vladimir Herzog, também professor da USP, preso após ter se apresentado espontaneamente ao Exército, meu pai acabou inventando um plano para tentar me tirar da prisão. Pediu a interdição de um conhecido do meu cunhado que fazia parte de um grupo de segurança da coletividade judaica em São Paulo. Este acertou com os militares a minha libertação e não ida a julgamento, desde que eu servisse como testemunha de acusação contra um dos meus companheiros, o Sergio Gomes. Colocaram minha mãe e minha irmã para me fazerem a proposta. Quando entendi do que se tratava, olhei para minha irmã e disse que me chocava muito vê-la participando desta proposta. Ela caiu em si e puxou minha mãe para fora da sala. Eu ainda tive que ouvir umas babaquices dos policiais envolvidos na negociação, de que eu era comunista mesmo, e voltei para a cela, orgulhoso mas chorando. Na primeira visita que meu pai me fez na cadeia, ele me pediu desculpas por ter agido daquela forma e que eu tinha feito muito bem de não ter aceitado aquela negociação. Foi a única vez que eu vi meu pai pedir desculpas por algo que ele fêz.
Para mim, o resto da prisão foi uma bela escola de comunismo. Vivíamos 45 pessoas divididas em cinco celas. Havia uma dispensa coletiva, uma escola para o ensino supletivo, uma oficina para realizar artesanato em couro - para arrecadar fundos para aqueles que tinham que continuar a sustentar suas famílias, o jornal oral “O Parcial” e muita conversa paralela. Eu dormia no teto de uma cama beliche a uns 50 cm do telhado. Este “filhinho de papai” conheceu dirigentes operários, líderes de organizações de camponeses, ex-deputados, ex-vereadores, enfim, um mundo que antes desconhecia e que só pertencia ao meu imaginário. Um dos presos era o José Ferreira da Silva, o Frei Chico, irmão do Lula, e numa visita de fim de semana dos parentes é que tive meu primeiro contato com quem viria a ser o Presidente do Brasil.
Em fins de 1975 sai da prisão meio perturbado. Me sentia mais seguro e feliz lá dentro do que fora. As feras estavam soltas e os homens estavam presos. A vida tomou rumos estranhos, e meus pais resolveram controlar minha vida. A mulher que eu gostava era uma colega do Partido, que fugiu para o exterior, e eu só fui vê-la novamente 5 anos depois, com a Anistia aos presos políticos promulgada pelo Governo em 1980. Em 1976, entrei em depressão e quase que perco o ano na Faculdade. Prometi ao professor que, se me desse a chance de seguir adiante, iria fazer saúde pública, sem arriscar a vida de nenhum paciente. Passei de ano e fui fazer saúde pública como especialização.
A prisão provocou alguns efeitos inesperados. Fui procurado pelo Presidente da Associação de Servidores do Hospital das Clínicas, o HC, que se apresentou como um comunista perdido, e que estava feliz de saber que havia estudantes do Partidão tão perto. Escrevemos uma longa entrevista com ele, que foi publicada no jornal do Centro Acadêmico e distribuída para todos os servidores do HC. A Associação não tinha um jornal próprio. Em 1976 este dirigente organizou a primeira greve de funcionários públicos desde 1969 reivindicando aumento salarial. A greve foi massiva, muito bem organizada, vitoriosa e aquela entrevista foi o início do processo.