Saúde Pública
Meu primeiro emprego foi o de Médico Dermatologista da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo em 1980. Este ano foi um ano especial para o programa de controle da Hanseníase. A introdução do antibiótico rifampicina permitiu a cura definitiva da Hanseníase pela primeira vez. Começamos a estabelecer protocolos de alta para pacientes e seus familiares íntimos. Muitos tinham feridas na sola dos pés por falta adequada de tratamento (mal perfurante plantar). Consegui acabar com este mal em todos os meus pacientes. Para não haver recidivas, há a necessidade de sapatos e palmilhas especiais, e não tínhamos como oferecè-las. Nesta hora apareceu uma carta do Francisco Augusto Vieira Nunes, o Bacurau, de um Hospital em Bauru relatando a criação do Movimento de Reintegração do Hanseniano, Mohan.
A cada duas semanas todos os médicos envolvidos no programa de controle da Hanseníase de todos os Centros de Saúde da Região do ABC tinham um encontro técnico. A cada encontro um de nós era encarregado de conduzir a reunião. Na maioria das vezes discutia-se um artigo científico que o encarrregado do encontro escolhia e providenciava cópias para os demais. Chegou minha vez e eu não tive tempo de escolher um artigo científico para a reunião. Tirei a carta do Bacurau da minha pasta e comecei a lê-la. Aleguei que não adiantava o nosso esforço como técnicos para melhorar o programa se os principais interessados, os pacientes, não mostrassem sua face e não passassem a reivindicar uma infraestrutura adequada que nos permitissem exercer nosso trabalho da melhor forma possível. No final desta reunião, decidimos convocar todos os pacientes dos Centros de Saúde da região do ABC para uma Assembléia e convidamos o Bacurau para presidi-la. Na agenda, a criação do Mohan no ABC e a reivindicação para a criação de uma oficina ortopédica por parte do Estado. Apareceram uns 500 pacientes e familiares. Perdemos uma reunião técnica, mas ganhamos um salto na qualidade do tratamento dos pacientes na região.
O Bacurau ficou tão satisfeito com a Assembléia que não voltou mais a Bauru. A sede do Morhan passou a ser em São Bernardo e este movimento passou a editar um jornal. Eu e o José Rubens, chefe do Centro de Saúde de São Bernardo, viramos assistentes técnicos. O Morhan passou a agregar todas as colônias de hansenianos e até hoje exerce uma importante ação política na defesa dos mais excluídos pela sociedade.
O que sempre guiou minhas ações em saúde pública foi a participação ativa dos principais interesados, a população ou grupo de doentes, na defesa de sua saúde ou no controle de suas doenças, que poderia ser resumida no termo “consciência sanitária”. Este termo foi cunhado pelos italianos, mas tem como origem os ensinamentos pedagógicos de Paulo Freire. Cheguei a participar da primeira Conferência de Promoção da Saúde em Toronto, Canada, em 1990. Nesta conferência estavam procurando um termo em inglès que refletisse a “conscientização para ação” de Paulo Freire. Mais tarde alguém na América do Norte propôs o termo “empowerment” para este conceito. É irônico que hoje, no Brasil, “empowerment” é traduzido por “empoderamento”, em vez de “conscientização para a ação” ou “consciência sanitária.”
O movimento hoje denominado de “Promoção da Saúde” tem os mesmos objetivos a alcançar na comunidade em geral que o movimento de saúde ocupacional promovido pelos sindicatos filiados ao Partido Comunista Italiano. A historiografia oficial da “Promoção da Saúde” começa em 1986 com a Carta de Ottawa, mas os comunistas italianos já faziam a mesma coisa na década de 70.
Fui médico do trabalho do Sindicato dos Metalúrgicos de Guarulhos de 1982 a 1985. Nesta função dava cursos de treinamentos para representantes dos trabalhadores nas Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (CIPA), editava uma revista de saúde para manter um contato permanente com os cipeiros e demais interesssados nas questões de saúde e segurança, participava de processos judiciais que o Sindicato impretava a favor de trabalhadores vítimas de acidentes e doenças ocupacionais e era médico de referência para os clínicos gerais em doenças ocupacionais.
Antes da reforma sanitária italiana, os serviços de segurança e higiene do trabalho pertenciam aos sindicatos, sendo um importante instrumento de fortalecimento sindical e defesa da saúde de uma parcela significativa da população. Com a reforma sanitária estes serviços se tornaram públicos, incorporados pelas secretarias de saúde de governos, perdendo o vínculo com os sindicatos. No Brasil foi feito o mesmo movimento. Se tivéssemos mantido o que havíamos construído em alguns poucos Sindicatos e ampliado aquele trabalho, teríamos hoje mais políticas de prevenção. O enfoque curativo acabou prevalecendo, os sindicatos perderam um instrumento de fortalecimento, e a política de prevenção de doenças e acidentes se enfraqueceu.
Em 1984 surge a oportunidade de ir para Milão, Itália, fazer uma espécie de internato na Clinica Del Lavoro Luigi Devoto, que é um centro de pesquisa importante em segurança e higiene do trabalho e que foi um hospital especializado em doenças profissionais, o primeiro, fundado em 1904. Éramos oito brasileiros, sete médicos e uma socióloga, ligados direta ou indiretamente ao David Capistrano, que através da amizade que tinha com Giovanni Berlinguer, grande sanitarista, na época Senador no parlamento italiano, conseguiu criar esta oportunidade de treinamento para pessoas envolvidas com a medicina do trabalho em Sindicatos.
Quando chegamos em Milão, tivemos dificuldade de inserção nos Departamentos desta Clínica. Fomos impostos a eles pelo governo, mas eles não tinham uma estrutura para atender estudantes em estagiáios de curta temporada. Alguns de nós desistiram e resolveram ir passear. Um deles chegou a me dizer: “Não fique angustiado. Quando você voltar ao Brasil continue dizendo as mesmas besteiras que você falava antes, só que você diz que aprendeu na Itália e todos vão acreditar.” Este não era meu espírito. Todo dia ficava na porta do serviço de Epidemiologia esperando o chefe entrar, dizia “Bom Dia” e ia para a mesma porta esperá-lo a sair para dizer “Boa Noite”. Na segunda semana ele me convidou para entrar. Sentei em frente a ele e já fui falando: “Está muito difícil para mim ficar aqui. Sou casado, tenho dois filhos pequenos no Brasil e vim aqui para aprender alguma coisa”. Ele levou um susto e daí em diante passei a ser muito bem recebido por ele e sua equipe. Piero Alberto Bertazzo, passou a me levar em todos os lugares e reuniões em que ia. Foi uma ótima oportunidade de aprendizado.
Através do Piero entrei em contato com a nascente Epidemiologia Clínica que veio a se transformar na Medicina com Base em Evidências. De volta ao Brasil, eu e mais três colegas, estudantes de pós graduação de epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública criamos um grupo de estudos e lemos a primeira edição do livro do casal Fletcher e do Edward Wagner sobre Epidemiologia Clínica. Em Porto Alegre haviam dois professores, o casal Bruce Duncam e Maria Inês Schmidt que introduziram o assunto na pós-graduação da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nós quatro fomos fazer um curso intensivo de uma semana com eles. Juntos passamos a divulgar este curso em São Paulo e outras cidades brasileiras. Ao cabo de dois anos, Bruce e Maria Inês, com nossa ajuda, já haviam treinado quase 600 profissionais em Metodologia de Pesquisa Clínica.
Minha dissertação de mestrado tinha que estar conectada com a possibilidade de aumento da consciência sanitária de algum grupo. Trabalhei dados de mortalidade por ocupação, agregando-os por classe social, respeitando a estrutura sindical brasileira. Parte desta pesquisa foi financiada pela Federação dos Sindicatos Metalúrgicos de São Paulo e seu resultado acabou sendo divulgado pela revista “Veja” causando uma grande repercussão. Este trabalho foi desenvolvido contra a corrente. A moda era classificar as pessoas em classes sociais do ponto de vista marxista (burguesia, pequena burguesia, proletariado urbano etc) para utilizá-las em estudos a serem desenvolvidos em uma nova “epidemiologia social”. Muitos sanitaristas adotavam a auto-denominada epidemiologia social como a versão latina da epidemiologia, contra a epidemiologia dos americanos. Muitos viram nosso trabalho com a epidemiologia clínica como uma manobra do imperialismo para solapar a nascente epidemiologia social, que através de seus achados iria, pela pedagogia, conscientizar os estudantes da necessidade de libertar os oprimidos latinos do imperialismo americano. A minha descrição de desigualdades sem utilizar categorias marxistas e minha participação na promoção da epidemiologia clínica não foi bem recebida nos meios acadêmicos de medicina preventiva onde preponderava a esquerda dogmática.
Em Bauru, entre 1985 e 1987, montamos a Comissão de Investigação e Análise de Óbitos Infantis. Todas as mortes no primeiro ano de vida eram investigadas em profundidade, inclundo visitas domiciliares e autópsias quando necessário. Uma vez por mês reunia a população de um bairro para discutir com as mães os achados de nossas investigações. O objetivo era ampliar a consciência sanitária delas no trato dos risco a saúde infantil. Uma ocasião, em um bairro, eu era o único homem na sala da Associação de Moradores e começou uma discussão se aleitamento materno fazia o “peito cair” ou não. Algumas esposas jovens alegavam que seus maridos iriam largá-las se elas amamentassem no seio pois o “peito cai” após o período de amamentação. Eu só ficava repetindo o que aprendi na Faculdade da importância do leite materno para os bebês e estava completamente despreparado para aquela discussão do mundo real. Aí umas mulheres mais velhas começaram o colocar seus seios para fora de suas blusas para mostrar as outras que amamentação não causava lascidão dos seios. De repente estavam todas com os peitos para fora descobrindo que o “peito caia” para algumas, amamentando ou não no seio, e não caia para outras, amamentando ou não no seio. Aprendi muito com elas neste dia.
Um efeito colateral da Comissão de Investigação de Óbitos Infantis é que fizemos uma descoberta importante no campo da epidemiologia materno-infantil, sem ter consciência dela. Ao comparar nossos dados com dados esperados de causas de mortalidade infantil, chamava a atenção o fato de termos raros casos de morte infantil súbita e termos um número razoável de óbitos por pneumonia aspirativa (causa incomum). O que tínhamos de especial é que fazíamos autópsia de todos os casos de mortes súbitas, e pela autópsia identificamos que a grande maioria destes casos era devido a aspiração do leite materno pelo bebê. Passamos a orientar todas as mães a dar uns tapinhas nas costas do bebê após a amamentação e só deitá-los depois que eles arrotassem. Nunca publicamos estes achados e esta orientação. Comentei este fato com um grande epidemiologista brasileiro que trabalhava com epidemiologia materno-infantil junto com um pessoal na Inglaterra. César Victora ficou impressionado com o achado, principalmente por que todas as pesquisas, sem elucidação do nexo causal, de morte súbita naquela época eram relacionadas a poluição em ambientes fechados. Não sei se o Cessar é parte ou não desta cadeia de enventos, mas um ano depois os ingleses publicam que morte súbita infantil é causada por aspiração de leite materno e este evento passa a ser denominado de “doença do berço” em todo o mundo.
Um outro efeito colateral da Comissão de Investigação e Análise de Óbitos Infantis foi o programa de Defesa da Vida do Lactente, que era um programa com base em análise de risco no momento do nascimento e uma intervenção especial às crianças identificadas como de alto risco. David Capistrano e eu fizemos um sistema de pontuação com 11 variáveis clínicas e sócio-ecnômicas identificadas no estudo de coorte de crianças realizado por César Victora e Fernando Barros em Pelotas. Eu fiz um acompanhamento de todas as crianças nascidas no prazo de um ano e meio para validar e aprimorar este sistema de pontuação. O resultado final foi apresentado na minha tese de doutorado e este trabalho serviu de referência a muitos outros programs de saúde com base em análise de risco.
Fui Professor de Epidemiologia na Faculade de Saúde Pública da Univerdade de São Paulo entre 1983 e 1992. Encontrei um Departamento dividido entre dois professores titulares. Os cargos de novos professores eram preenchidos por cotas que cada um deles tinha. Havia alguns professores não tão poderosos que também tinham suas cotas, mas não faziam parte da disputa do poder do Departamento. Foi na cota de um professor não tão poderoso, Edmundo Juarez, que me tornei professor. Encontrei, também, um Departamento dividido em tipos de doenças. Em 1983, a auto-denominada epidemiologia moderna ainda não havia chegado lá. Apostei na introdução da epidemiologia moderna, o que acabou acontecendo, e em uma nova relação entre os professores do tipo “cooperativismo”. Esta nova relação não aconteceu e acabou predominando a antropofagia universitária, um espetáculo contínuo de vaidades querendo destruir umas às outras. Sempre quiz estar longe deste tipo de ambiente. Confiei em um “líder” que deixei administrando uma verba de pesquisa que havia recebido da Fundação Kellog, quando fui para o Canadá em 1989 fazer um pós-doutorado. Quando voltei em 1991 a verba havia sido desviada para outros fins sem meu conhecimento e eu nunca pude utilizá-la. A Universidade me ofereceu um espaço para fazer muitas coisas que relatei aqui nesta história, mas a larguei quando optei por morar no Canada.
Já no Canadá entre 1993 a 2000, consegui trabalhar com a ampliação da consciência sanitária. Fazia um relatório anual sobre indicadores de determinantes de saúde e alguns deles alimentava a imprensa local. Quando não tinham matéria, um dos editores do jornal local ligava para mim e pedia um indicador e nomes para iniciar uma discussão. Procurava trabalhar com indicadores na forma de porcentagens pois a interpretação de porcentagens é instintiva para o público. Um dos casos foi com o indicador “parenting”. As enfermeiras de saúde pública entre suas atividades, reviam algumas habilidades das mães nos cuidados de suas crianças. Estas habilidades eram revistas no momento que as mães levavam suas crianças para vacinação. Como podemos medir a qualidade de atenção materna e paterna em um número? Descobrimos um “proxi”, uma medida que resumisse o que a atividade queria atingir mesmo de forma indireta: tempo que o pai e a mãe gastam conversando (em caso de adolescentes) ou brincando (em caso de crianças) com seus filhos. Em uma reunião arbitramos que o tempo mínimo deveria ser de 15 minutos por dia. O resultado foi uma grande diferença entre mães e pais, o que causou uma importante discussão sobre o papel dos pais na formação das crianças. Alguns pais reclamaram: “eu trabalho o dia inteiro e chego cansado em casa. Não dá para brincar ou conversar com os filhos. Isto é função da esposa”. O entendimento de que pai e mãe tem funções diferentes na formação dos filhos foi um importante sub-produto destas discussões.
Em 2001, já de volta no Brasil, fui para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Anvisa. Era uma instituição nova, com um bom comando. Tive uma oportunidade incrível de organizar um serviço e atualizar a regulamentação sanitária na área de medicamentos de acordo com o estado da arte do assunto. Gonzalo Vecina Neto, o primeiro Diretor-Presidente da Anvisa queria sair do “cartório para o laboratório”. Ao montar a Agência criou duas unidades novas: uma para habilitar uma rede de laboratórios, para dar conta das novas exigências que viriam, e uma de vigilância pós-comercialização, para monitorar a qualidade dos produtos no mercado. Para a vigilância pós-comercialização ele queria um epidemiologista e eu fui o convidado. O convite foi feito quando estava em recuperação pós a cirurgia de doação do fígado. Gonzalo foi me entregando cada vez mais novos desafios. Depois de estruturar a rede de Hospitais Sentinelas como instrumento principal para a realização da vigilância de produtos pós-comercialização (projeto premiado em 2007 pela Escola Nacional de Administração Pública), comecei a trabalhar com o Projeto Bulas, que visava o controle da acurácia da informação prestada pela indústria, sua atualização eletrônica e ampliar o acesso através de uma linguagem mais simples e busca pela internet. A seguir fui incumbido de re-escrever o regulamento técnico de registro de medicaments que culminou com 19 diferentes regulamentos depois de dois anos de consultas públicas envolvendo centenas de indústrias, serviços e instituições acadêmicas. Por fim tive a oportunidade de gerenciar a área de registro de medicamentos.
Gostaria de compartilhar a visão que adquiri de vigilância sanitária. As ações de vigilância sanitária compreendem: 1) regulamentação e fiscalização da qualidade de produtos utilizados na assistência a saúde, 2) regulamentação e fiscalização da qualidade de serviços direcionadas à assistência a saúde, 3) regulamentação e fiscalização da qualidade dos alimentos para evitar doenças infecciosas e intoxicações químicas, 4) regulamentação e fiscalização da qualidade da água para evitar doenças infecciosas, 5) regulamentação e fiscalização da disposição de efluentes e lixo para evitar doenças infecciosas, 6) promoção da saúde no tocante a poluição de solo e ar que afetam a saúde da comunidade, 7) promoção da saúde no tocante a possíveis riscos no ambiente do trabalho que afetam a saúde do trabalhador, 8) proteção à comunidade quanto ao trânsito de viajantes e entrada de produtos que possam afetar a saúde de membros da comunidade, 9) defesa do consumidor quanto a informações que venham a ser veiculadas na promoção comercial de produtos utilizados na assistência a saúde, 10) defesa do consumidor quanto ao abuso de preços e a monopolização do mercado utilizados na assistência a saúde.
Como seriam as definições de metas para conceitos como regulamentação, fiscalização, promoção, proteção e defesa? Como definir metas quando a unidade de ação da vigilância sanitária não são indivíduos e sim agregados de indivíduos, ou seja, comunidades ou espaços?
O campo da saúde está habituado a metas relacionadas à redução de morbidade ou mortalidade. De uma forma simplista podemos afirmar que a meta da vigilância sanitária é ”zero casos” de doença ou morte causada por falta de qualidade, por falta de redução de risco ambiental e do ambiente de trabalho, por falta de fiscalização no trânsito de pessoas e objetos que possam vir a provocar doenças, por falta de acesso a produtos de saúde ou por propaganda enganosa.
No caso de doenças infecciosas preveníveis por ações de saneamento ou vacinação o nexo causal é imediato e é possível falar em redução de uma morbidade específica. Mesmo nestes casos, uma redução de mortalidade já é multicausal e não pode ser diretamente atribuída às ações de vacinação ou saneamento.
Em todas as demais circunstâncias, onde a rede de multicausalidade não tem uma forte preponderância de um único fator é difícil atribuir uma meta em termos de redução de morbidade ou mortalidade. São raras as circunstâncias em vigilância sanitária onde a relação causa-efeito é imediata.
Financiar ou não ações de vigilância sanitária por parte de uma comunidade depende do patamar de qualidade de vida alcançável em determinado momento por esta comunidade. Por exemplo: para quem ainda não tem acesso a serviços de saúde é difícil a mobilização por qualidade destes serviços. Porém, para quem já tem o aceso garantido, qualidade é o próximo passo. Podemos dizer que a tendência é a vigilância sanitária assumir uma importância cada vez maior junto à população conforme ocorra a melhora de oferta de serviços e a ampliação de seu nível educacional.
Quais são as metas da vigilância sanitária? Existir onde ainda não existe, ganhar eficiência, ganhar abrangência, estar conectada com as lideranças das comunidades e difundir suas ações, rumo a utopia do “zero casos” em que suas ações poderiam ter evitado.
Cabe salientar que enquanto a Anvisa está mais absorvida com o controle de qualidade de um produto ou serviço, as vigilâncias sanitárias municipais estão mais absorvidas pela qualidade do meio ambiente, saneamento e comércio dos alimentos. Algumas vigilâncias sanitárias estaduais têm ações específicas de inspeção periódica de alguns serviços de saúde, indústrias produtoras de insumos de saúde, controle de solo, de alimentos e de ambientes de trabalho.
Uma avaliação viável da ação da vigilância sanitária é a coleta sistemática de indicadores de conformidade e de uso adequado a partir de amostras de consumo de produtos ou serviços. Enquanto o indicador de conformidade avalia mais a ação do sistema a nível central, o indicador de uso adequado avalia mais o sistema a nível local.
É discutível se o Estado deve produzir medicamentos, mas ninguém tem dúvida que é o Estado que deve fiscalizar e punir quem mistura farinha no medicamento ou proclama um poder terapêutico que não existe. Uma agência regulatória visa evitar fraudes e manter um padrão mínimo de qualidade no mercado. Se não for pela presença do Estado, os diversos atores econômicos vão procurar tirar vantagem do sistema, diminuindo a qualidade de seus produtos. Ninguém é santo neste jogo. Na área de regulação de medicamentos entramos em choque com a indústria nacional que queria manter a produção de medicamentos sem passar por testes de conformidade do produto. Estavam acostumados com a função cartorial do Ministério da Saúde nesta área, onde se vendia registros de medicamentos com fórmulas antes deles começarem a ser produzidos. Quando eram produzidos a fórmula era outra. Este segmento, agitando a bandeira nacionalista, sempre procurou tirar vantagens do Estado, dando em troca a sociedade produtos de qualidade discutível. Entramos em choque também com as multinacionais que queriam que seus testes de qualidade produzidos nas matrizes servissem a todos os países do mundo. Nós os obrigamos a repetir os testes aqui para permitir a transferência de tecnologia e permitir o monitoramento de qualidade quando o medicamento estivesse em comercialização.
O sucesso deste tipo de política depende dela se tornar política pública e não somente política de governo. A chave para este salto está nas consultas públicas. Elas devem envolver o máximo de atores, o máximo de discussões técnicas. Esta foi minha nova militância na sociedade democrática: participar da criação de políticas públicas. Uma organização não governamental (ONG) começou um programa de construção de cisternas no interior do Nordeste. Este programa foi incorporado pela sociedade local e hoje é uma política pública. Se na época da ditadura, fazer política era subverter o Governo para derrubá-lo, na democracia, fazer política é criar políticas públicas e lutar para criar instituições fortes, com um gerenciamento transparente, justo e eficiente. Acredito muito neste tipo de militância via o local de trabalho.
A base da qualidade de um medicamento são testes laboratoriais e ensaios clínicos. Dependendo do tipo de medicamento ele deve passar por equivalência farmacêutica, bioequivalência, testes toxicológicos, ensaios clínicos fase III e testes de estabilidade. A Anvisa criou uma legislação que exige estes testes, credenciou laboratórios em condições de realizar estes testes, mas o sucesso desta política depende da competência em fiscalizar estes laboratórios credenciados e saber interpretar e questionar o resultados destes testes. Para isto faz-se necessário recursos humanos altamente qualificados. Desde a saída do Gonzalo Vecina da direção da Anvisa, começou a haver um desmonte deste capital intelectual, culminando com a dissolução do grupo técnico responsável pela análise de estudos de bioequivalência, pilar do sucesso da política de genéricos no Brasil. Há muito mais uma preocupação em homogeneizar a mão de obra técnica da Anvisa do que capacitar cada especialista em uma especificidade que no conjunto faria da Anvisa um capital intelectual que o setor regulado não teria condições de conduzir para atender a seus interesses.
Na medida que o mercado de medicamentos vai se qualificando, a questão da qualidade e veracidade das informações repassadas aos pacientes assume cada vez mais importância. O uso racional de medicamentos passa pelo acesso rápido por parte dos prescritores à alternativas terapêuticas para cada indicação de tratamento. O projeto Bulas Anvisa-Bireme tinha esta finalidade e foi interrompido em 2005.
No campo da legislação, não consegui ir até o fim em quatro áreas. 1) Extensão de Comercialização – esta é uma resolução que chegou a ser aprovada pela Diretoria Colegiada depois de várias rodadas de consultas públicas, mas não aprovada pela Procuradoria, por se chocar com a Lei maior de 1976. Um simples decreto lei retirando uma palavra da Lei de 1976 que define o que é registro de medicamentos resolveria esta questão. Esta Resolução racionalizaria muito o trabalho da Anvisa e daria maior transparëncia ao mercado (acredito que haveria numa redução de 1/3 no volume de trabalho nas áreas de registo de similares e genéricos). 2) Medicamentos de Referência –uma simples mudança na Lei de Genéricos permitiria legalizar a flexibilidade que de fato a Anvisa adota na definição de medicamentos de referência (que tem que adotar para viabilizar a política de genéricos). 3) Importação de Matérias Primas – Fizemos uma proposta de só permitiria importação de matérias primas que tivessem sido aprovadas pelas farmacopéias Americanas ou Européias, que é o padrão de qualidade imposto pelos órgãos regulatórios dos EUA e da Europa. Esta proposta não foi aprovada pela Diretoria Colegiada e até hoje temos uma conduta mais restritiva para o produto nacional e mais leniente para com o produto importado. 4) Propriedade Intelectual – A Anvisa tem um grupo com 15 técnicos trabalhando na área de análise de processos de patente de fármacos, sem uma Resolução que dê transparência ao que estão fazendo. Julgo que no momento o trabalho é muito bom e sério, mas, por questão de princípio e por ser um valor da Anvisa, ela não deve trabalhar sem transparëncia. A questão da propriedade intelectual é seríssima do ponto de vista de política industrial de um País e há um potencial de conflito com o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual se continuarmos trabalhando sem uma Resolução. A Anvisa, as universidades de ponta e a indústria nacional que têm condições de desenvolver novos fármacos deveriam trabalhar juntas em uma proposta de Resolução a ser submetida a consulta pública. Quando tive condições de me envolver com esta área, fui impedido de ter qualquer iniciativa nesta direção.
Quando voltei ao Brasil em 2000, resumi a diferença entre Canadá e Brasil em uma única palavra: gerenciamento. Hoje sei por que o gerenciamento de resultados dá certo no Canadá e não no Brasil.
Primeiro porque no Brasil há muitos gerentes para poucos diretores. Onde trabalhei no Canadá, havia sete diretores e uns 100 gerentes, ou seja, cada diretor tinha que supervisionar uns 15 gerentes. Sem ser por resultados é difícil gerenciar. Em 2006, na Anvisa havia uns 60 gerentes supervisionados por uns 20 gerentes-gerais, divididos para 5 diretores. Se cada gerente geral supervisiona três em média, a atividade principal fica sendo o controle dos processos. Não há outra coisa para fazer. Poucos (os melhores) têm uma atividade técnica própria. Eu acho que não é difícil gerenciar por resultados: o primeiro resultado que se pode pactuar com um novo gerente é dar-lhe um tempo para apresentar um plano de trabalho com cronograma e indicadores de resultados.
O segundo segredo é ter a pessoa certa para a respectiva função. Para isto é fundamental a descrição das atribuições de cada função (que tem no Canadá) e um processo de seleção público de gerentes para trazer a uma organização o que há de mais competente no mercado de trabalho. A função do Diretor é dar a palavra final na admissão, demitir, cobrar resultados e tomar decisões a nível estratégico.
As autorizações de atividades de processo nunca são realizadas pelo Diretor no Canadá. Cada gerência é uma unidade orçamentária e tem que se virar com o dinheiro que tem (este é o terceiro segredo). Se gastar tudo em passagem de avião para deslocamento de pessoal, por exemplo, não conseguirá terminar o ano e o gerente perderá o emprego (uma das condições para ser gerente e permanecer gerente é saber controlar o orçamento). Há softwares comerciais que dão conta de acompanhamento orçamentário por mês, para ajudar o gerente a cumprir esta função. O dinheiro orçado é distribuído para cada gerência e pode ser na forma de “vales virtuais” que podem “circular” em uma Instituição Pública como se cada gerência tivesse recebido um montante em dinheiro para ser administrado.
A minha opinião é que a implantação do gerenciamento de resultados tem que ser feita por pressão de fora da Instituição. Não há como isto partir da estrutura burocrática vigente. Observei que muitos gerentes são pessoas que sozinhas não conseguem chegar a resultado algum, seja por incompetência técnica, seja por dificuldade de agregar pessoas em torno de idéias. Por isto vivem de controlar o trabalho dos outros e se apropriar de idéias ou resultados de outros. Para se manter no poder, fazem o jogo de nunca se contrapor aos diretores (ou gerentes gerais), alimentando suas vaidades com ausência de críticas e presença de elogios. Se conseguirem jogar um diretor contra outro para posar de fiel escudeiro de um deles, fica melhor ainda. Os que estão abaixo deles são os oprimidos, que vão se tornando cínicos para sobreviver a este tipo de ambiente de trabalho. O drama é que devido a este tipo de burocracia os mais inteligentes vão se afastando e as instituições que trabalham desta forma vão se tornando medíocres.
Ao comparar o sistema de saúde canadense com o brasileiro, acabei tomando consciência da agenda incompleta do SUS na campo da atenção hospitalar. Antes da criação do SUS tivemos por um curto período o SUDS. O SUDS criou regionais de saúde a partir da cobertura de hospitais terciários. Cada regional tinha uma rede de atenção básica em centros de saúde, integrando a parte curativa com a prevenção. O SUDS previa hospitais gerais estaduais entre a rede básica e o hospital terciário. Esta proposta é similar ao modelo de assistência a saúde público inglês e canadense.
No Brasil, houve uma aliança entre o movimento municipalista e o movimento pela reforma sanitária, que culminou na criação do SUS na Constituinte. O SUS fez do município a base política da organização do sistema de saúde e alguns hospitais federais e estaduais foram municipalizados. Previa-se a criação de consórcios municipais para administrar hospitais mas a cooperação entre diferentes municípios não ocorreu. O que ocorrreu é que cada município tentou criar ou criou seu pequeno hospital, o setor privado acabou criando pequenos hospitais também e hoje temos uma rede de seis mil hospitais não integrada entre hospitais gerais e terciários causando má qualidade no atendimento hospitalar (grande quantidade de mortes evitáveis por iatrogenias) e uso irracional de recursos (baixa eficiência em uma área que drena grande quantidade de recursos). A meu ver, o ideal seria deixar a rede de atenção básica, o Programa de Saúde da Família, e ambulatórios de especialidades para a gestão municípal e a rede hospitalar para a gestão estadual, que tem melhores condições de proporcionar a integração com a rede básica de vários municípios.
As resoluções da Anvisa visam a traçar um padrão mínimo de qualidade de produção e comercialização de insumos e serviços de saúde. A grande ameaça para quem não cumpre este padrão é a da vigilância sanitária interditar estes serviços ou linhas de produção, ou recolher produtos do mercado. No caso de serviços de saúde é muito difícil fechá-los sem ter uma alternativa para manter o acesso. Portanto, resoluções da Anvisa para os serviços públicos de saúde são inócuas se não ajudarmos estes serviços a identificar e controlar riscos sanitários, clínicos e ocupacionais.
O Projeto Hospitais Sentinelas e a aproximação do programa de controle de infecção hospitalar ao gerenciamento de todos os tipos de riscos hospitalares é um caminho promissor. A introdução nos Estados Unidos da campanha “Salvar 100.000 vidas” toda ela com base em gerenciamento de risco aponta novos caminhos de qualificação dos serviços de saúde. Um sistema de vigilância de infecção hospitalar com base em casos e não resultados de laboratórios, separando casos endêmicos de casos epidêmicos, com a preocupação maior de adotar medidas preventivas e não a da utilização de antibióticos, faz parte deste caminho.
Meu primeiro emprego foi o de Médico Dermatologista da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo em 1980. Este ano foi um ano especial para o programa de controle da Hanseníase. A introdução do antibiótico rifampicina permitiu a cura definitiva da Hanseníase pela primeira vez. Começamos a estabelecer protocolos de alta para pacientes e seus familiares íntimos. Muitos tinham feridas na sola dos pés por falta adequada de tratamento (mal perfurante plantar). Consegui acabar com este mal em todos os meus pacientes. Para não haver recidivas, há a necessidade de sapatos e palmilhas especiais, e não tínhamos como oferecè-las. Nesta hora apareceu uma carta do Francisco Augusto Vieira Nunes, o Bacurau, de um Hospital em Bauru relatando a criação do Movimento de Reintegração do Hanseniano, Mohan.
A cada duas semanas todos os médicos envolvidos no programa de controle da Hanseníase de todos os Centros de Saúde da Região do ABC tinham um encontro técnico. A cada encontro um de nós era encarregado de conduzir a reunião. Na maioria das vezes discutia-se um artigo científico que o encarrregado do encontro escolhia e providenciava cópias para os demais. Chegou minha vez e eu não tive tempo de escolher um artigo científico para a reunião. Tirei a carta do Bacurau da minha pasta e comecei a lê-la. Aleguei que não adiantava o nosso esforço como técnicos para melhorar o programa se os principais interessados, os pacientes, não mostrassem sua face e não passassem a reivindicar uma infraestrutura adequada que nos permitissem exercer nosso trabalho da melhor forma possível. No final desta reunião, decidimos convocar todos os pacientes dos Centros de Saúde da região do ABC para uma Assembléia e convidamos o Bacurau para presidi-la. Na agenda, a criação do Mohan no ABC e a reivindicação para a criação de uma oficina ortopédica por parte do Estado. Apareceram uns 500 pacientes e familiares. Perdemos uma reunião técnica, mas ganhamos um salto na qualidade do tratamento dos pacientes na região.
O Bacurau ficou tão satisfeito com a Assembléia que não voltou mais a Bauru. A sede do Morhan passou a ser em São Bernardo e este movimento passou a editar um jornal. Eu e o José Rubens, chefe do Centro de Saúde de São Bernardo, viramos assistentes técnicos. O Morhan passou a agregar todas as colônias de hansenianos e até hoje exerce uma importante ação política na defesa dos mais excluídos pela sociedade.
O que sempre guiou minhas ações em saúde pública foi a participação ativa dos principais interesados, a população ou grupo de doentes, na defesa de sua saúde ou no controle de suas doenças, que poderia ser resumida no termo “consciência sanitária”. Este termo foi cunhado pelos italianos, mas tem como origem os ensinamentos pedagógicos de Paulo Freire. Cheguei a participar da primeira Conferência de Promoção da Saúde em Toronto, Canada, em 1990. Nesta conferência estavam procurando um termo em inglès que refletisse a “conscientização para ação” de Paulo Freire. Mais tarde alguém na América do Norte propôs o termo “empowerment” para este conceito. É irônico que hoje, no Brasil, “empowerment” é traduzido por “empoderamento”, em vez de “conscientização para a ação” ou “consciência sanitária.”
O movimento hoje denominado de “Promoção da Saúde” tem os mesmos objetivos a alcançar na comunidade em geral que o movimento de saúde ocupacional promovido pelos sindicatos filiados ao Partido Comunista Italiano. A historiografia oficial da “Promoção da Saúde” começa em 1986 com a Carta de Ottawa, mas os comunistas italianos já faziam a mesma coisa na década de 70.
Fui médico do trabalho do Sindicato dos Metalúrgicos de Guarulhos de 1982 a 1985. Nesta função dava cursos de treinamentos para representantes dos trabalhadores nas Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (CIPA), editava uma revista de saúde para manter um contato permanente com os cipeiros e demais interesssados nas questões de saúde e segurança, participava de processos judiciais que o Sindicato impretava a favor de trabalhadores vítimas de acidentes e doenças ocupacionais e era médico de referência para os clínicos gerais em doenças ocupacionais.
Antes da reforma sanitária italiana, os serviços de segurança e higiene do trabalho pertenciam aos sindicatos, sendo um importante instrumento de fortalecimento sindical e defesa da saúde de uma parcela significativa da população. Com a reforma sanitária estes serviços se tornaram públicos, incorporados pelas secretarias de saúde de governos, perdendo o vínculo com os sindicatos. No Brasil foi feito o mesmo movimento. Se tivéssemos mantido o que havíamos construído em alguns poucos Sindicatos e ampliado aquele trabalho, teríamos hoje mais políticas de prevenção. O enfoque curativo acabou prevalecendo, os sindicatos perderam um instrumento de fortalecimento, e a política de prevenção de doenças e acidentes se enfraqueceu.
Em 1984 surge a oportunidade de ir para Milão, Itália, fazer uma espécie de internato na Clinica Del Lavoro Luigi Devoto, que é um centro de pesquisa importante em segurança e higiene do trabalho e que foi um hospital especializado em doenças profissionais, o primeiro, fundado em 1904. Éramos oito brasileiros, sete médicos e uma socióloga, ligados direta ou indiretamente ao David Capistrano, que através da amizade que tinha com Giovanni Berlinguer, grande sanitarista, na época Senador no parlamento italiano, conseguiu criar esta oportunidade de treinamento para pessoas envolvidas com a medicina do trabalho em Sindicatos.
Quando chegamos em Milão, tivemos dificuldade de inserção nos Departamentos desta Clínica. Fomos impostos a eles pelo governo, mas eles não tinham uma estrutura para atender estudantes em estagiáios de curta temporada. Alguns de nós desistiram e resolveram ir passear. Um deles chegou a me dizer: “Não fique angustiado. Quando você voltar ao Brasil continue dizendo as mesmas besteiras que você falava antes, só que você diz que aprendeu na Itália e todos vão acreditar.” Este não era meu espírito. Todo dia ficava na porta do serviço de Epidemiologia esperando o chefe entrar, dizia “Bom Dia” e ia para a mesma porta esperá-lo a sair para dizer “Boa Noite”. Na segunda semana ele me convidou para entrar. Sentei em frente a ele e já fui falando: “Está muito difícil para mim ficar aqui. Sou casado, tenho dois filhos pequenos no Brasil e vim aqui para aprender alguma coisa”. Ele levou um susto e daí em diante passei a ser muito bem recebido por ele e sua equipe. Piero Alberto Bertazzo, passou a me levar em todos os lugares e reuniões em que ia. Foi uma ótima oportunidade de aprendizado.
Através do Piero entrei em contato com a nascente Epidemiologia Clínica que veio a se transformar na Medicina com Base em Evidências. De volta ao Brasil, eu e mais três colegas, estudantes de pós graduação de epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública criamos um grupo de estudos e lemos a primeira edição do livro do casal Fletcher e do Edward Wagner sobre Epidemiologia Clínica. Em Porto Alegre haviam dois professores, o casal Bruce Duncam e Maria Inês Schmidt que introduziram o assunto na pós-graduação da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nós quatro fomos fazer um curso intensivo de uma semana com eles. Juntos passamos a divulgar este curso em São Paulo e outras cidades brasileiras. Ao cabo de dois anos, Bruce e Maria Inês, com nossa ajuda, já haviam treinado quase 600 profissionais em Metodologia de Pesquisa Clínica.
Minha dissertação de mestrado tinha que estar conectada com a possibilidade de aumento da consciência sanitária de algum grupo. Trabalhei dados de mortalidade por ocupação, agregando-os por classe social, respeitando a estrutura sindical brasileira. Parte desta pesquisa foi financiada pela Federação dos Sindicatos Metalúrgicos de São Paulo e seu resultado acabou sendo divulgado pela revista “Veja” causando uma grande repercussão. Este trabalho foi desenvolvido contra a corrente. A moda era classificar as pessoas em classes sociais do ponto de vista marxista (burguesia, pequena burguesia, proletariado urbano etc) para utilizá-las em estudos a serem desenvolvidos em uma nova “epidemiologia social”. Muitos sanitaristas adotavam a auto-denominada epidemiologia social como a versão latina da epidemiologia, contra a epidemiologia dos americanos. Muitos viram nosso trabalho com a epidemiologia clínica como uma manobra do imperialismo para solapar a nascente epidemiologia social, que através de seus achados iria, pela pedagogia, conscientizar os estudantes da necessidade de libertar os oprimidos latinos do imperialismo americano. A minha descrição de desigualdades sem utilizar categorias marxistas e minha participação na promoção da epidemiologia clínica não foi bem recebida nos meios acadêmicos de medicina preventiva onde preponderava a esquerda dogmática.
Em Bauru, entre 1985 e 1987, montamos a Comissão de Investigação e Análise de Óbitos Infantis. Todas as mortes no primeiro ano de vida eram investigadas em profundidade, inclundo visitas domiciliares e autópsias quando necessário. Uma vez por mês reunia a população de um bairro para discutir com as mães os achados de nossas investigações. O objetivo era ampliar a consciência sanitária delas no trato dos risco a saúde infantil. Uma ocasião, em um bairro, eu era o único homem na sala da Associação de Moradores e começou uma discussão se aleitamento materno fazia o “peito cair” ou não. Algumas esposas jovens alegavam que seus maridos iriam largá-las se elas amamentassem no seio pois o “peito cai” após o período de amamentação. Eu só ficava repetindo o que aprendi na Faculdade da importância do leite materno para os bebês e estava completamente despreparado para aquela discussão do mundo real. Aí umas mulheres mais velhas começaram o colocar seus seios para fora de suas blusas para mostrar as outras que amamentação não causava lascidão dos seios. De repente estavam todas com os peitos para fora descobrindo que o “peito caia” para algumas, amamentando ou não no seio, e não caia para outras, amamentando ou não no seio. Aprendi muito com elas neste dia.
Um efeito colateral da Comissão de Investigação de Óbitos Infantis é que fizemos uma descoberta importante no campo da epidemiologia materno-infantil, sem ter consciência dela. Ao comparar nossos dados com dados esperados de causas de mortalidade infantil, chamava a atenção o fato de termos raros casos de morte infantil súbita e termos um número razoável de óbitos por pneumonia aspirativa (causa incomum). O que tínhamos de especial é que fazíamos autópsia de todos os casos de mortes súbitas, e pela autópsia identificamos que a grande maioria destes casos era devido a aspiração do leite materno pelo bebê. Passamos a orientar todas as mães a dar uns tapinhas nas costas do bebê após a amamentação e só deitá-los depois que eles arrotassem. Nunca publicamos estes achados e esta orientação. Comentei este fato com um grande epidemiologista brasileiro que trabalhava com epidemiologia materno-infantil junto com um pessoal na Inglaterra. César Victora ficou impressionado com o achado, principalmente por que todas as pesquisas, sem elucidação do nexo causal, de morte súbita naquela época eram relacionadas a poluição em ambientes fechados. Não sei se o Cessar é parte ou não desta cadeia de enventos, mas um ano depois os ingleses publicam que morte súbita infantil é causada por aspiração de leite materno e este evento passa a ser denominado de “doença do berço” em todo o mundo.
Um outro efeito colateral da Comissão de Investigação e Análise de Óbitos Infantis foi o programa de Defesa da Vida do Lactente, que era um programa com base em análise de risco no momento do nascimento e uma intervenção especial às crianças identificadas como de alto risco. David Capistrano e eu fizemos um sistema de pontuação com 11 variáveis clínicas e sócio-ecnômicas identificadas no estudo de coorte de crianças realizado por César Victora e Fernando Barros em Pelotas. Eu fiz um acompanhamento de todas as crianças nascidas no prazo de um ano e meio para validar e aprimorar este sistema de pontuação. O resultado final foi apresentado na minha tese de doutorado e este trabalho serviu de referência a muitos outros programs de saúde com base em análise de risco.
Fui Professor de Epidemiologia na Faculade de Saúde Pública da Univerdade de São Paulo entre 1983 e 1992. Encontrei um Departamento dividido entre dois professores titulares. Os cargos de novos professores eram preenchidos por cotas que cada um deles tinha. Havia alguns professores não tão poderosos que também tinham suas cotas, mas não faziam parte da disputa do poder do Departamento. Foi na cota de um professor não tão poderoso, Edmundo Juarez, que me tornei professor. Encontrei, também, um Departamento dividido em tipos de doenças. Em 1983, a auto-denominada epidemiologia moderna ainda não havia chegado lá. Apostei na introdução da epidemiologia moderna, o que acabou acontecendo, e em uma nova relação entre os professores do tipo “cooperativismo”. Esta nova relação não aconteceu e acabou predominando a antropofagia universitária, um espetáculo contínuo de vaidades querendo destruir umas às outras. Sempre quiz estar longe deste tipo de ambiente. Confiei em um “líder” que deixei administrando uma verba de pesquisa que havia recebido da Fundação Kellog, quando fui para o Canadá em 1989 fazer um pós-doutorado. Quando voltei em 1991 a verba havia sido desviada para outros fins sem meu conhecimento e eu nunca pude utilizá-la. A Universidade me ofereceu um espaço para fazer muitas coisas que relatei aqui nesta história, mas a larguei quando optei por morar no Canada.
Já no Canadá entre 1993 a 2000, consegui trabalhar com a ampliação da consciência sanitária. Fazia um relatório anual sobre indicadores de determinantes de saúde e alguns deles alimentava a imprensa local. Quando não tinham matéria, um dos editores do jornal local ligava para mim e pedia um indicador e nomes para iniciar uma discussão. Procurava trabalhar com indicadores na forma de porcentagens pois a interpretação de porcentagens é instintiva para o público. Um dos casos foi com o indicador “parenting”. As enfermeiras de saúde pública entre suas atividades, reviam algumas habilidades das mães nos cuidados de suas crianças. Estas habilidades eram revistas no momento que as mães levavam suas crianças para vacinação. Como podemos medir a qualidade de atenção materna e paterna em um número? Descobrimos um “proxi”, uma medida que resumisse o que a atividade queria atingir mesmo de forma indireta: tempo que o pai e a mãe gastam conversando (em caso de adolescentes) ou brincando (em caso de crianças) com seus filhos. Em uma reunião arbitramos que o tempo mínimo deveria ser de 15 minutos por dia. O resultado foi uma grande diferença entre mães e pais, o que causou uma importante discussão sobre o papel dos pais na formação das crianças. Alguns pais reclamaram: “eu trabalho o dia inteiro e chego cansado em casa. Não dá para brincar ou conversar com os filhos. Isto é função da esposa”. O entendimento de que pai e mãe tem funções diferentes na formação dos filhos foi um importante sub-produto destas discussões.
Em 2001, já de volta no Brasil, fui para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Anvisa. Era uma instituição nova, com um bom comando. Tive uma oportunidade incrível de organizar um serviço e atualizar a regulamentação sanitária na área de medicamentos de acordo com o estado da arte do assunto. Gonzalo Vecina Neto, o primeiro Diretor-Presidente da Anvisa queria sair do “cartório para o laboratório”. Ao montar a Agência criou duas unidades novas: uma para habilitar uma rede de laboratórios, para dar conta das novas exigências que viriam, e uma de vigilância pós-comercialização, para monitorar a qualidade dos produtos no mercado. Para a vigilância pós-comercialização ele queria um epidemiologista e eu fui o convidado. O convite foi feito quando estava em recuperação pós a cirurgia de doação do fígado. Gonzalo foi me entregando cada vez mais novos desafios. Depois de estruturar a rede de Hospitais Sentinelas como instrumento principal para a realização da vigilância de produtos pós-comercialização (projeto premiado em 2007 pela Escola Nacional de Administração Pública), comecei a trabalhar com o Projeto Bulas, que visava o controle da acurácia da informação prestada pela indústria, sua atualização eletrônica e ampliar o acesso através de uma linguagem mais simples e busca pela internet. A seguir fui incumbido de re-escrever o regulamento técnico de registro de medicaments que culminou com 19 diferentes regulamentos depois de dois anos de consultas públicas envolvendo centenas de indústrias, serviços e instituições acadêmicas. Por fim tive a oportunidade de gerenciar a área de registro de medicamentos.
Gostaria de compartilhar a visão que adquiri de vigilância sanitária. As ações de vigilância sanitária compreendem: 1) regulamentação e fiscalização da qualidade de produtos utilizados na assistência a saúde, 2) regulamentação e fiscalização da qualidade de serviços direcionadas à assistência a saúde, 3) regulamentação e fiscalização da qualidade dos alimentos para evitar doenças infecciosas e intoxicações químicas, 4) regulamentação e fiscalização da qualidade da água para evitar doenças infecciosas, 5) regulamentação e fiscalização da disposição de efluentes e lixo para evitar doenças infecciosas, 6) promoção da saúde no tocante a poluição de solo e ar que afetam a saúde da comunidade, 7) promoção da saúde no tocante a possíveis riscos no ambiente do trabalho que afetam a saúde do trabalhador, 8) proteção à comunidade quanto ao trânsito de viajantes e entrada de produtos que possam afetar a saúde de membros da comunidade, 9) defesa do consumidor quanto a informações que venham a ser veiculadas na promoção comercial de produtos utilizados na assistência a saúde, 10) defesa do consumidor quanto ao abuso de preços e a monopolização do mercado utilizados na assistência a saúde.
Como seriam as definições de metas para conceitos como regulamentação, fiscalização, promoção, proteção e defesa? Como definir metas quando a unidade de ação da vigilância sanitária não são indivíduos e sim agregados de indivíduos, ou seja, comunidades ou espaços?
O campo da saúde está habituado a metas relacionadas à redução de morbidade ou mortalidade. De uma forma simplista podemos afirmar que a meta da vigilância sanitária é ”zero casos” de doença ou morte causada por falta de qualidade, por falta de redução de risco ambiental e do ambiente de trabalho, por falta de fiscalização no trânsito de pessoas e objetos que possam vir a provocar doenças, por falta de acesso a produtos de saúde ou por propaganda enganosa.
No caso de doenças infecciosas preveníveis por ações de saneamento ou vacinação o nexo causal é imediato e é possível falar em redução de uma morbidade específica. Mesmo nestes casos, uma redução de mortalidade já é multicausal e não pode ser diretamente atribuída às ações de vacinação ou saneamento.
Em todas as demais circunstâncias, onde a rede de multicausalidade não tem uma forte preponderância de um único fator é difícil atribuir uma meta em termos de redução de morbidade ou mortalidade. São raras as circunstâncias em vigilância sanitária onde a relação causa-efeito é imediata.
Financiar ou não ações de vigilância sanitária por parte de uma comunidade depende do patamar de qualidade de vida alcançável em determinado momento por esta comunidade. Por exemplo: para quem ainda não tem acesso a serviços de saúde é difícil a mobilização por qualidade destes serviços. Porém, para quem já tem o aceso garantido, qualidade é o próximo passo. Podemos dizer que a tendência é a vigilância sanitária assumir uma importância cada vez maior junto à população conforme ocorra a melhora de oferta de serviços e a ampliação de seu nível educacional.
Quais são as metas da vigilância sanitária? Existir onde ainda não existe, ganhar eficiência, ganhar abrangência, estar conectada com as lideranças das comunidades e difundir suas ações, rumo a utopia do “zero casos” em que suas ações poderiam ter evitado.
Cabe salientar que enquanto a Anvisa está mais absorvida com o controle de qualidade de um produto ou serviço, as vigilâncias sanitárias municipais estão mais absorvidas pela qualidade do meio ambiente, saneamento e comércio dos alimentos. Algumas vigilâncias sanitárias estaduais têm ações específicas de inspeção periódica de alguns serviços de saúde, indústrias produtoras de insumos de saúde, controle de solo, de alimentos e de ambientes de trabalho.
Uma avaliação viável da ação da vigilância sanitária é a coleta sistemática de indicadores de conformidade e de uso adequado a partir de amostras de consumo de produtos ou serviços. Enquanto o indicador de conformidade avalia mais a ação do sistema a nível central, o indicador de uso adequado avalia mais o sistema a nível local.
É discutível se o Estado deve produzir medicamentos, mas ninguém tem dúvida que é o Estado que deve fiscalizar e punir quem mistura farinha no medicamento ou proclama um poder terapêutico que não existe. Uma agência regulatória visa evitar fraudes e manter um padrão mínimo de qualidade no mercado. Se não for pela presença do Estado, os diversos atores econômicos vão procurar tirar vantagem do sistema, diminuindo a qualidade de seus produtos. Ninguém é santo neste jogo. Na área de regulação de medicamentos entramos em choque com a indústria nacional que queria manter a produção de medicamentos sem passar por testes de conformidade do produto. Estavam acostumados com a função cartorial do Ministério da Saúde nesta área, onde se vendia registros de medicamentos com fórmulas antes deles começarem a ser produzidos. Quando eram produzidos a fórmula era outra. Este segmento, agitando a bandeira nacionalista, sempre procurou tirar vantagens do Estado, dando em troca a sociedade produtos de qualidade discutível. Entramos em choque também com as multinacionais que queriam que seus testes de qualidade produzidos nas matrizes servissem a todos os países do mundo. Nós os obrigamos a repetir os testes aqui para permitir a transferência de tecnologia e permitir o monitoramento de qualidade quando o medicamento estivesse em comercialização.
O sucesso deste tipo de política depende dela se tornar política pública e não somente política de governo. A chave para este salto está nas consultas públicas. Elas devem envolver o máximo de atores, o máximo de discussões técnicas. Esta foi minha nova militância na sociedade democrática: participar da criação de políticas públicas. Uma organização não governamental (ONG) começou um programa de construção de cisternas no interior do Nordeste. Este programa foi incorporado pela sociedade local e hoje é uma política pública. Se na época da ditadura, fazer política era subverter o Governo para derrubá-lo, na democracia, fazer política é criar políticas públicas e lutar para criar instituições fortes, com um gerenciamento transparente, justo e eficiente. Acredito muito neste tipo de militância via o local de trabalho.
A base da qualidade de um medicamento são testes laboratoriais e ensaios clínicos. Dependendo do tipo de medicamento ele deve passar por equivalência farmacêutica, bioequivalência, testes toxicológicos, ensaios clínicos fase III e testes de estabilidade. A Anvisa criou uma legislação que exige estes testes, credenciou laboratórios em condições de realizar estes testes, mas o sucesso desta política depende da competência em fiscalizar estes laboratórios credenciados e saber interpretar e questionar o resultados destes testes. Para isto faz-se necessário recursos humanos altamente qualificados. Desde a saída do Gonzalo Vecina da direção da Anvisa, começou a haver um desmonte deste capital intelectual, culminando com a dissolução do grupo técnico responsável pela análise de estudos de bioequivalência, pilar do sucesso da política de genéricos no Brasil. Há muito mais uma preocupação em homogeneizar a mão de obra técnica da Anvisa do que capacitar cada especialista em uma especificidade que no conjunto faria da Anvisa um capital intelectual que o setor regulado não teria condições de conduzir para atender a seus interesses.
Na medida que o mercado de medicamentos vai se qualificando, a questão da qualidade e veracidade das informações repassadas aos pacientes assume cada vez mais importância. O uso racional de medicamentos passa pelo acesso rápido por parte dos prescritores à alternativas terapêuticas para cada indicação de tratamento. O projeto Bulas Anvisa-Bireme tinha esta finalidade e foi interrompido em 2005.
No campo da legislação, não consegui ir até o fim em quatro áreas. 1) Extensão de Comercialização – esta é uma resolução que chegou a ser aprovada pela Diretoria Colegiada depois de várias rodadas de consultas públicas, mas não aprovada pela Procuradoria, por se chocar com a Lei maior de 1976. Um simples decreto lei retirando uma palavra da Lei de 1976 que define o que é registro de medicamentos resolveria esta questão. Esta Resolução racionalizaria muito o trabalho da Anvisa e daria maior transparëncia ao mercado (acredito que haveria numa redução de 1/3 no volume de trabalho nas áreas de registo de similares e genéricos). 2) Medicamentos de Referência –uma simples mudança na Lei de Genéricos permitiria legalizar a flexibilidade que de fato a Anvisa adota na definição de medicamentos de referência (que tem que adotar para viabilizar a política de genéricos). 3) Importação de Matérias Primas – Fizemos uma proposta de só permitiria importação de matérias primas que tivessem sido aprovadas pelas farmacopéias Americanas ou Européias, que é o padrão de qualidade imposto pelos órgãos regulatórios dos EUA e da Europa. Esta proposta não foi aprovada pela Diretoria Colegiada e até hoje temos uma conduta mais restritiva para o produto nacional e mais leniente para com o produto importado. 4) Propriedade Intelectual – A Anvisa tem um grupo com 15 técnicos trabalhando na área de análise de processos de patente de fármacos, sem uma Resolução que dê transparência ao que estão fazendo. Julgo que no momento o trabalho é muito bom e sério, mas, por questão de princípio e por ser um valor da Anvisa, ela não deve trabalhar sem transparëncia. A questão da propriedade intelectual é seríssima do ponto de vista de política industrial de um País e há um potencial de conflito com o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual se continuarmos trabalhando sem uma Resolução. A Anvisa, as universidades de ponta e a indústria nacional que têm condições de desenvolver novos fármacos deveriam trabalhar juntas em uma proposta de Resolução a ser submetida a consulta pública. Quando tive condições de me envolver com esta área, fui impedido de ter qualquer iniciativa nesta direção.
Quando voltei ao Brasil em 2000, resumi a diferença entre Canadá e Brasil em uma única palavra: gerenciamento. Hoje sei por que o gerenciamento de resultados dá certo no Canadá e não no Brasil.
Primeiro porque no Brasil há muitos gerentes para poucos diretores. Onde trabalhei no Canadá, havia sete diretores e uns 100 gerentes, ou seja, cada diretor tinha que supervisionar uns 15 gerentes. Sem ser por resultados é difícil gerenciar. Em 2006, na Anvisa havia uns 60 gerentes supervisionados por uns 20 gerentes-gerais, divididos para 5 diretores. Se cada gerente geral supervisiona três em média, a atividade principal fica sendo o controle dos processos. Não há outra coisa para fazer. Poucos (os melhores) têm uma atividade técnica própria. Eu acho que não é difícil gerenciar por resultados: o primeiro resultado que se pode pactuar com um novo gerente é dar-lhe um tempo para apresentar um plano de trabalho com cronograma e indicadores de resultados.
O segundo segredo é ter a pessoa certa para a respectiva função. Para isto é fundamental a descrição das atribuições de cada função (que tem no Canadá) e um processo de seleção público de gerentes para trazer a uma organização o que há de mais competente no mercado de trabalho. A função do Diretor é dar a palavra final na admissão, demitir, cobrar resultados e tomar decisões a nível estratégico.
As autorizações de atividades de processo nunca são realizadas pelo Diretor no Canadá. Cada gerência é uma unidade orçamentária e tem que se virar com o dinheiro que tem (este é o terceiro segredo). Se gastar tudo em passagem de avião para deslocamento de pessoal, por exemplo, não conseguirá terminar o ano e o gerente perderá o emprego (uma das condições para ser gerente e permanecer gerente é saber controlar o orçamento). Há softwares comerciais que dão conta de acompanhamento orçamentário por mês, para ajudar o gerente a cumprir esta função. O dinheiro orçado é distribuído para cada gerência e pode ser na forma de “vales virtuais” que podem “circular” em uma Instituição Pública como se cada gerência tivesse recebido um montante em dinheiro para ser administrado.
A minha opinião é que a implantação do gerenciamento de resultados tem que ser feita por pressão de fora da Instituição. Não há como isto partir da estrutura burocrática vigente. Observei que muitos gerentes são pessoas que sozinhas não conseguem chegar a resultado algum, seja por incompetência técnica, seja por dificuldade de agregar pessoas em torno de idéias. Por isto vivem de controlar o trabalho dos outros e se apropriar de idéias ou resultados de outros. Para se manter no poder, fazem o jogo de nunca se contrapor aos diretores (ou gerentes gerais), alimentando suas vaidades com ausência de críticas e presença de elogios. Se conseguirem jogar um diretor contra outro para posar de fiel escudeiro de um deles, fica melhor ainda. Os que estão abaixo deles são os oprimidos, que vão se tornando cínicos para sobreviver a este tipo de ambiente de trabalho. O drama é que devido a este tipo de burocracia os mais inteligentes vão se afastando e as instituições que trabalham desta forma vão se tornando medíocres.
Ao comparar o sistema de saúde canadense com o brasileiro, acabei tomando consciência da agenda incompleta do SUS na campo da atenção hospitalar. Antes da criação do SUS tivemos por um curto período o SUDS. O SUDS criou regionais de saúde a partir da cobertura de hospitais terciários. Cada regional tinha uma rede de atenção básica em centros de saúde, integrando a parte curativa com a prevenção. O SUDS previa hospitais gerais estaduais entre a rede básica e o hospital terciário. Esta proposta é similar ao modelo de assistência a saúde público inglês e canadense.
No Brasil, houve uma aliança entre o movimento municipalista e o movimento pela reforma sanitária, que culminou na criação do SUS na Constituinte. O SUS fez do município a base política da organização do sistema de saúde e alguns hospitais federais e estaduais foram municipalizados. Previa-se a criação de consórcios municipais para administrar hospitais mas a cooperação entre diferentes municípios não ocorreu. O que ocorrreu é que cada município tentou criar ou criou seu pequeno hospital, o setor privado acabou criando pequenos hospitais também e hoje temos uma rede de seis mil hospitais não integrada entre hospitais gerais e terciários causando má qualidade no atendimento hospitalar (grande quantidade de mortes evitáveis por iatrogenias) e uso irracional de recursos (baixa eficiência em uma área que drena grande quantidade de recursos). A meu ver, o ideal seria deixar a rede de atenção básica, o Programa de Saúde da Família, e ambulatórios de especialidades para a gestão municípal e a rede hospitalar para a gestão estadual, que tem melhores condições de proporcionar a integração com a rede básica de vários municípios.
As resoluções da Anvisa visam a traçar um padrão mínimo de qualidade de produção e comercialização de insumos e serviços de saúde. A grande ameaça para quem não cumpre este padrão é a da vigilância sanitária interditar estes serviços ou linhas de produção, ou recolher produtos do mercado. No caso de serviços de saúde é muito difícil fechá-los sem ter uma alternativa para manter o acesso. Portanto, resoluções da Anvisa para os serviços públicos de saúde são inócuas se não ajudarmos estes serviços a identificar e controlar riscos sanitários, clínicos e ocupacionais.
O Projeto Hospitais Sentinelas e a aproximação do programa de controle de infecção hospitalar ao gerenciamento de todos os tipos de riscos hospitalares é um caminho promissor. A introdução nos Estados Unidos da campanha “Salvar 100.000 vidas” toda ela com base em gerenciamento de risco aponta novos caminhos de qualificação dos serviços de saúde. Um sistema de vigilância de infecção hospitalar com base em casos e não resultados de laboratórios, separando casos endêmicos de casos epidêmicos, com a preocupação maior de adotar medidas preventivas e não a da utilização de antibióticos, faz parte deste caminho.