Saturday, April 7, 2007

Prefácio

Memórias de uma Derrota – Brasil, 1967-2007


Prefácio


Escrever estas passagens de minha vida não tem o objetivo de exibicionismo. Se estivesse morando no Brasil, não as teria escrito. Já que tomei a decisão de encerrar minha carreira profissional e atividade política no Brasil, acho que minha experiência e idéias talvez venham a ser úteis aos mais jovens que porventura venham a ler esta história e é tambem um convite ao diálogo com os companheiros que viveram os mesmos eventos.
Para mim, também é um exercício de organização de idéias. Muitos acontecimentos e desilusões necessitavam ser digeridas. Esta história me ajudou a entender as mudanças que tinham ocorrido em mim e ao meu redor. Espero que seja útil a vocês.

Querendo entender

Querendo entender


Quando criança, compartilhava o mesmo quarto que minha avó Raquel. Ela nasceu numa aldeia judaica na Polônia, mas só falava idiche e mal o portugues. Minha avó trazia sempre consigo a última carta que havia recebido de suas irmãs. Seus pais tinham nove filhos vivos antes da segunda guerra, muitos já casados e com seus respectivos filhos. Depois da segunda guerra, só o irmão mais novo, que era solteiro deu sinal de vida e veio ao Brasil à sua procura. Todos os demais haviam sido gaseificados pelos nazistas.

Eu devia ter uns oito anos de idade quando ela me perguntou pela primeira por que esta desgraça havia acontecido. Eu lhe explicava, usando como argumento a História da ascenção de Hitler ao poder. Eu lia muitos livros sobre a Segunda Guerra Mundial e cada vez minhas respostas ficavam mais elaboradas. Porém, quando acabava de dar minha explicação ela perguntava de novo: mas por que? Prometi a mim mesmo que um dia iria encontrar uma explicação para os fatos e dar a devida resposta a ela. Ela morreu quando eu tinha 14 anos e nunca lhe consegui formular uma resposta que não terminasse com a pergunta dela, “mas por que?”

Nasci em 1954, o mais novo e o único homem entre três filhos. Meu pai era dentista e professor universitário. Minha mãe, dona de casa. Minha irmã do meio nasceu com um problema na vista, que a levou a várias cirurgias e inúmeros exercícios, que tinha que fazer em casa com o auxílio de minha mãe. Meus pais acabaram comprando o serviço de uma jovem negra para cuidar de mim, a Ana. Ela era a pessoa mais próxima de mim quando criança. Começou a namorar o funcionário da Prefeitura que vinha pegar o lixo na porta de nossa casa e eu participava deste namoro indo junto com eles à noite para umas caminhadas na vizinhança. O jovem pretendente vasculhava os lixos que recolhia em busca de selos que trazia para a minha coleção recém iniciada. À noite, quando vinha namorar, eu recebia satisfeito os presentes. Gostava muito do casal.

Um dia eles se casaram e perdi minha principal referência com o mundo externo. Consegui um dia que minha mãe me levasse para visitá-los. Eles já tinham um filho e viviam em um lugar muito pobre em condições muito modestas. Até hoje me lembro deste dia. Como pode a pessoa que me criou não poder oferecer as mesmas condições que eu tive para criar seus próprios filhos? Por que uma jovem tem que vender seus serviços para criar os filhos dos outros?

Entrei na adolescência disposto a encontrar respostas do por que do Holocausto e do por que de tanta desiguladade e diferença de oportunidades na sociedade.

Socialismo

Socialismo

Era 1966 inicio o primeiro ano ginasial no Colégio de Aplicação da Faculdade de Filosofia, Ciëncias e Letras da USP na cidade de São Paulo. Era o laboratório pedagógico e local de estágio de futuros professores de ensino secundário formados pela USP.

Entrei nesta escola depois de um exame de admissão, contra minha vontade, que era permanecer na escola judaica em que fiz o ensino primário. Em nossa casa não seguíamos ritos religiosos. A escola em que eu estava não era religiosa, mas era sionista. Havia um processo de educação para nos preparar para Aliah (emigrar para Israel), e alguns colegas meus de classe desta época fizeram esta opção. Acredito que se meu pai não tivesse me tirado desta escola, eu também teria feito esta opção quando crescesse. Bloqueado o meu futuro sionista, abriu-se a possibilidade de um novo caminho.

Em 1967 surgiu a primeira greve em nossa escola, relacionada a uma briga entre a Faculdade de Educação da USP e a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (o Colégio de Aplicação existe hoje sob o comando da Faculdade de Educação). A Faculdade de Educação destituiu o Diretor de nossa escola, que tinha o apoio dos professores da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Os alunos entraram no meio da briga a favor da permanência do Diretor. A forma de apoio foi uma greve e a ocupação da escola. Me posicionei a favor dos grevistas e participei das assembléias diárias. Para pedir a palavra nestas assembléias pedia-se uma inscrição à mesa. Porém, quando chegava a vez de falar devido ao grande número de inscritos, muitas vezes o assunto já era outro. Me arrisquei: pedi a palavra e tive sorte. O assunto em discussão já havia mudado mas tive a oportunidade de fazer uma leitura com críticas ingênuas sobre um manifesto dos alunos que eram contra a greve, que estava começando a circular, que foi muito ovacionado. Ganhei até um beijo de uma menina do clássico (na época o colegial era dividido em clássico, para os que pretendiam cursar ciências humanas e científico para quem pretendia cursar ciências exatas). Gostei de toda aquela novidade e agitação.

Em 1968 começaram as greves universitárias e as passeatas contra a ditadura. Não participei das passeatas, mas acompanhei tudo “debaixo da escada”. Embaixo da escada tinha o mimeógrafo do Diretório Estudantil, e eu e Almir, o encarregado do jornalzinho do Diretório, íamos trazendo as notícias do movimento para dentro da Escola. O Almir estava no científico e estudava a noite. Eu estudava a tarde e pela manhã fazíamos o jornal sobre a direção dos líderes do Diretório que estudavam no período da manhã.

Neste ano iniciou-se minha politização e aproximação com a literatura de esquerda. Sou convidado para participar de um grupo de estudos de judeus, cuja maioria morava no Bom Retiro e tinha estudado nas Escola Sholem Aleichem. Nesta época a comunidade judaica era dividida em duas: a sionista, que ensinava a seus filhos o hebraico e a internacionalista, que ensinava o idiche. O grupo internacionalista morava no Bom Retiro, mas eram mais pobres, mantinham a escola Sholem Aleichem e o teatro TAIB. O grupo sionista havia se mudado em sua maioria para Higienópolis (o “Melhor Retiro”). Para lazer, o grupo sionista frequentava o clube Hebraica e o internacionalista o clube Macabi. Eu era o mais novo do grupo de estudos. Começamos com “O Papel do Homem na História” de Plekhanov e em seguida o “Manifesto do Partido Comunista” de Marx e Engles. Deste grupo de estudo saíram um playboy, um dirigente de uma organização trotskista e um membro do Partidão, o Partido Comunista Brasileiro.

Em 1969, através do Ato Institucional número 5, o Governo fechou o Congresso, criou a censura a imprensa e intensificou a repressão. Na liderança do movimento estudantil a discussão era a de aderir a luta armada, que havia se iniciado em 1968, ou adotar a resistência pacífica, acreditando na força de greves, passeatas e desobediência civil, para acabar com a ditadura. Eu nunca tive dúvidas de que a luta armada era fazer o jogo do adversário, a ditadura militar, que estava muito mais preparada para o confronto violento. A maioria dos líderes do Colégio de Aplicação aderiram à luta armada, criando um vácuo na direção do Diretório Acadêmico, que foi preenchido por um grupo minoritário, o Partidão. O Almir, encarregado do jornal do Diretório, era do Partidão, e o Partidão era contra a luta armada.

Fui convidado a fazer parte da próxima Diretoria. Chapa única, ganhamos a eleição. O Almir era o Presidente, o João o vice e eu o Secretário. O Almir foi preso em abril por ter impresso um jornal clandestino para uma facção da luta armada. Ele imprimia qualquer coisa, pois este era o trabalho que lhe dava de comer. Acabou indo comer de dentro da prisão por uns seis meses. O João assume então a Presidência, mas renuncia em julho, pois tinha que estudar para passar no exame de vestibular. Eu, com 14 anos, na quarta série ginasial, assumi a Presidência do Diretório em julho de 1969. Foi também o começo das minhas atividades clandestinas: distribuir o jornal Resistência em minha escola. A publicação mensal era produzida no Rio de Janeiro, à partir de matérias censuradas na imprensa, por um grupo que mais tarde aderiu à luta armada.

A repressão na Universidade resolveu acabar com o nosso Colégio em 1970. Permaneceu somente como escola primária, que na época estava sobre o comando da Faculdade de Educação. O ginásio e o colégio entraram na rede estadual, com a designação de Colégio Estadual Fidelino de Figueiredo. Nossa tarefa no Diretório era resisitr a este desmantelamento, mantendo atividades como teatro, música, fotografia que deixaram de ser oferecidas pela escola. Outra tarefa era manter as carteirinhas estudantis com idades falsificadas para permitir a entrada do pessoal do colégio e do ginásio em filmes proibidos, num drible contra a censura desatinada. Através das ações do Diretório fiz novas amizades, para as quais passei a ser uma referência em política. Apareceu também um jovem do terceiro colegial, mais velho, que desafiava minha posição de liderança no Diretório. Em julho de 1970, antes de terminar meu mandato, renunciei à Presidência. Este colega passou a ser o Presidente interino até as eleições seguintes, me permitindo dedicar ao que eu achava prioritário naquele momento: trabalhar com o grupo de teatro, e criar um grupo de estudos com mais cinco colegas para estudar marxismo.

Enquanto era Presidente, mantinha ligações com dois partidos: a Polop e o PCB. Enquanto a pessoa da Polop queria vender suas idéias como as únicas verdadeiras do mundo, o contato que tinha com o Partidão era de uma pessoa muito mais madura que estava mais preocupado em abrir minha cabeça que me doutrinar. Através dele recebia a imprensa de vários grupos clandestinos e ele tinha uma visão de que nossa principal missão como garotos de classe média era a de estudar para sermos bons profissionais a serviço da classe operária. Quem iria derrubar a ditadura militar eram os operários e não um bando de estudantes ou guerrilheiros. E eu ouvia isto de um homem mulato, alto, magro e nordestino. Era o José Montenegro de Lima que foi preso em 1975, torturado e assassinado no DOI-CODI, centro de tortura do Exército, e seu corpo nunca recuperado pela família.

Minha admissão no Partidão passava por fazer um curso: ABC do PCB. Tínhamos que ler e discutir uma cartilha que tinha a linha programática do Partido. Fiz este curso na casa do Almir e a Professora era a filha do Prestes e da Olga Benário, como vim a saber anos mais tarde. A idéia de montar o grupo de estudo de marxismo com meus amigos visava a reproduzir as aulas que estava tendo neste curso. Nosso grupo era muito bom, e sempre fomos críticos de tudo. Eu mesmo nunca engoli a revolução em duas etapas: a nacional-democrática e a socialista depois. Esta era uma crítica da Polop ao Partidão que sempre concordei. Um dos membros do nosso grupo, o Clovis Goldemberg, quando discutíamos o livro “Salário, Preço e Lucro” de Marx, apresentou a tese que Marx “havia cagado” pois a história havia demonstrado que ele estava errado quanto ao prognóstico que ele tinha para a pequena burguesia. Depois de muita discussão ele nos convenceu que Marx “cagou”. Com espírito aberto e compromisso de luta pacifica contra a ditadura, nos filiamos todos ao Partidão em meados de 1971.

Nosso grupo só parou de se reunir em 1972, quando fomos todos estudar para passar no exame de vestibular. Esta era a nossa tarefa. Nesta época, conheci outros membros do Partidão, entre eles um velho dirigente que me pediu para ajudá-lo a escrever uma carta de protesto, pelo fato da Prefeitura ter decidido colocar grades nos principais parques infantis da cidade. Ignorando o início do descontrole da violência urbana, ele argumentava sobre o que seria das crianças se nascessem tendo que brincar já cercadas. Era este tipo de gente que eu ia conhecendo, enquanto os jovens que aderiram a luta armada morriam baleados no confronto com a ditadura ou em seus porões, após serem torturados.

Em 1972 participamos da primeira grande iniciativa que envolvia as células do Partidão do Movimento Secundarista e Universitário. Era organizar a comemoração dos 50 anos da Semana de Arte Moderna, como um marco de resistência cultural. Entre outras coisas, discutíamos como revigorar o chorinho e a música Latina-americana no meio estudantil.

Em 1973 entrei na Faculdade de Medicina da USP. Já havia uma militante por lá, e juntos começamos a organizar o Partido na Faculdade e a encontrar uma alternativa para o Centro Acadêmico. Cometemos algums erros, mas em 1975 a chapa que organizamos e apoiamos ganhou a eleição para o Centro Acadêmico. Naquele ano, a influência do Partidão no conjunto dos Centros Acadêmicos seria muito grande, não fossem as prisões efetuadas de setembro a outubro.

Em 1974, a direção do último grupo a favor da luta armada foi dizimada: caiu parte da direção do PC do B e a guerrilha rural do Araguaia foi desbaratada antes mesmo de começar. A repressão se volta contra o Partidão. Apesar de não ter aderido à luta armada, o Partidão representava o inimigo na Guerra Fria, a “embaixada” de Moscou no Brasil. A repressão não teve dificuldades para acabar com o Partidão. Muitos de seus dirigentes tinham uma vida apenas semi-clandestina. Pegaram um deles, torturaram sua mulher e filha na frente dele e ele passou a ser um “cachorro”, um informante em troca de segurança para si e sua família. A queda começa pela gráfica, o coração de uma organização clandestina pacífica, e segue na direção da cabeça, o Comitê Central. Provavelmente, através de informação de pessoas infiltradas no exterior, o exército consegue pegar na fronteira os dirigentes que estavam voltando para o Brasil e os assassinam. A seguir começam a desmembrar o corpo de cima para baixo. Dirigentes torturados vão entregando os militantes para os quais eles davam assistência, ou seja, orientação para a ação política.

Nos fins de 1974 termina a aventura do meu primeiro amor e fico com a impressão que o mundo acabou. Meu Pai me vendo tão triste resolveu me dar um prêmio para me animar: “uma viagem para Londres para você aprender inglês.”. Comprou uma passagem, me levou até o aereoporto e disse: “em caso de emergência ligue para a Embaixada do Brasil na Inglaterra. Aqui está o telefone.” No avião encontrei outros jovens que também estavam indo para Londres estudar inglês nas férias, só que eles estavam em um grupo com tudo definido. Quando descemos no aereoporto e eles foram embora, fiquei sozinho sem saber aonde ir. Já me vi em emergência e liguei do saguão do aereoporto, em um telefone público, para a Embaixada do Brasil. Me pediram para ir para lá e fui muito bem recebido. Havia uma Casa da Cultura do Brasil e neste lugar havia acomodação para estudantes de pós-graduação. Porém, nas férias alguns tinham retornado ao Brasil. Me arrumaram um quarto que dividi com o neto de um Ministro, que não era estudante de pós-graduação, até eu arrumar um novo lugar.

Fiquei fascinado por Londres, assisti a vários filmes que estavam proibidos no Brasil e me inscrevi em um curso de inglês, do sistema público, para estrangeiros a noite. Na segunda semana de aula sentei finalmente para fazer as lições da escola que já estavam se acumulando. Olhei para a janela e me perguntei: “o que estou fazendo aqui na porta da Europa, fechado em um quarto, fazendo lição de casa?” Fechei os cadernos, me despedi do pessoal da Casa da Cultura e peguei o trem para Paris (na época não havia aindo o túnel, e atravessei o Canal da Mancha de barco).

Em Paris sabia que um Professor e amigo, Carlos Corbett, estava com a esposa em mais uma lua de mel do casal. Apareço de repente no hotel em que estavam, me lembro que ele abriu espantado a porta do quarto dele e eles ainda estavam na cama. Só faltou eu deitar na cama no meio deles! Era o próprio aluno chato perseguindo o Professor até Paris! Me acomodei no mesmo hotel e procurei me virar sozinho. Porém, não falava francês. Isto foi virando um problema e o solucionei comprando uma passagem para Lisboa.

Em Lisboa, fui para a casa do Miguel Urbano Rodrigues, comunista português, pai de um amigo meu do Partidão. Quando ele estava no Brasil, na condição de exilado, Miguel era jornalista da Revista Visão. Com a Revolução dos Cravos em 1974 em Portugal, os exilados políticos voltaram e Miguel se tornou editor chefe de um jornal de esquerda em Lisboa. Através de sua orientação, consegui uma acomodação na Residência dos Estudantes da Universidade de Lisboa.

O grupo político dominante na Residência era um grupo maoista cuja sigla era MRPP. O Partidão de lá os chamavam de MR Pum Pum acentuando o caráter de esquerda festiva que era como os caracterizavam. Tinha alguns estudantes do Partidão de lá, o PCP, na Residência, mas eram discretos naquele ambiente. Era janeiro de 1975, governo Vasco Gonçalves, e havia muita agitação. Ambiente perfeito para mim. Frequentei assembléias de condutores de ônibus (que estavam em greve) e de estudantes. As assembléias dos estudantes eram diárias e começava com a votação da agenda: votavam se iam ou não discutir certos ítens. A discussão sobre o que iam discutir levava horas.

De noite ia para a casa do Miguel Urbano. Cheguei até a dar um palpíte sobre um título para uma matéria que ele tinha escrito e que ele acatou. A casa dele vivia cheia de gente e de discussões. Frequentava estas conversas um jovem jornalista barbudo brasileiro, desconhecido na época: o Fernando de Moraes, que viria a ser futuro deputado, escritor consagrado, e Secretário de Educação do Estado em São Paulo. Saimos juntos por uma noite e ele me contou que estava de passagem para Lisboa para ir a Cuba via Madri escrever uma reportagem do que viria a ser o livro, campeão de vendas, “A Ilha”. Perguntou se eu queria ir com ele (ou eu perguntei se poderia ir com ele), mas que para isto eu precisava mandar meu passaporte para a Embaixada da Espanha para conseguir um visto especial já que era proibido para brasileiros ir a Cuba. Iria infligir uma lei brasileira. Como era militante, fiquei com medo que caso descoberto a minha presença em Cuba, de ser preso na minha volta ao Brasil. Ele tinha o respaldo da Revista em que trabalhava. Perdi a oportunidade de participar desta aventura e conhecer melhor o Fernando de Moraes.

Dois meses depois, volto ao Brasil e meu Pai me pergunta em inglês como tinha sido meus estudos em Londres. Eu repondo em sotaque de Portugal: “sabe pá, a bicha era comprida, eu não aguentei esperar e fui pra Purtugal.”

No Brasil, enquanto as organizações da luta armada aprendiam que deveriam resistir à tortura, nós aprendemos que a melhor defesa era nossa inserção no movimento de massas. Quando a repressão nos atingisse, a sociedade teria que sentir que perdeu uma parte de seu corpo e deveria reagir contra esta perda. Foi o que aconteceu em outubro de 1975. A repressão não estava preparada para as prisões em massa que realizaram. De repente eles tinham mais nomes para prender que pessoas para irem prendê-las. Prenderam pessoas sem importância na organização permitindo que dirigentes escapassem. Tiveram que abrir delegacias de polícia antes de estarem prontas para acomodar tantos presos. Mataram alguns em “acidentes de trabalho” na tortura. De um tenente da polícia militar, poucos ficaram sabendo, mas quando mataram Herzog, jornalista judeu, editor do jornal da TV Cultura que pertence ao Estado, ex-radialista da BBC de Londres, a sociedade reagiu.

Reagindo à morte de Herzog, a Universidade entrou em greve geral e a Igreja tomou a iniciativa de realizar uma missa ecumênica na Sé, que contou com a presença de 8 mil pessoas. Dois anos antes, Alexandre Vannuchi, um estudante de geologia e da Direção de seu Centro Acadêmico, morreu após tortura. Não era o primeiro, mas nós universitários do Partidão, em conjunto com a Igreja Católica, organizamos uma missa ecumênica na Catedral da Sé. Esta mesma ação política da Igreja foi aplicada para nos ajudar em 1975.

O Presidente Geisel veio a São Paulo e ameaçou o Comandante do II Exército com a demissão, caso houvesse um próximo cadáver. Cinco meses depois, um novo cadáver, foi morto o operário Manoel Fiel Filho. O Comandante é destituído e iniciou-se uma crise militar que culminou com a demissão do Ministro do Exército e a vitória, entre os militares, da linha a favor do fim da ditadura. Em 1976, Figueiredo é indicado presidente do Brasil, como o último militar do ciclo da ditadura e jura “fazer deste País uma Democracia. E eu prendo e arrebento quem for contra.”

Eu estava no DOI-CODI quando Herzog morreu. Em 1975, antes da entrada de Figueiredo no Governo, enquanto estava no terceiro ano da Faculdade, mais pessoas próximas de mim estavam sendo presas a cada dia. Nós, universitários do Partidão em São Paulo, sabíamos que poderíamos ser os próximos. Nosso assistente para a Universidade teve a idéia de lançar uma chapa para representantes dos alunos no Conselho Universitário, e eu foi um deles. Fizemos muita propaganda e percorri várias classes em diferentes Faculdades. Este é um exemplo de como reagimos à onda de prisões. Antes das eleições do Conselho Umiversitário acabei sendo preso.

Soube que seria a minha vez, quando foi preso um colega de Faculdade, o Ubiratan de Paula Santos, o qual eu tinha introduzido ao Partidão. Me encontrei com um amigo da época do Colégio de Aplicação que estudava na Politécnica, o Allen Habert, e ele também sabia de outras prisões de companheiros. Ficou claro que todos os nomes do Comitê Universitário estavam abertos. Ele foi acampar e apareceu um ano depois. Na época, meu pai era o Diretor da Faculdade de Odontologia da USP, e me sugeriu a seguinte estratégia: eu iria me entragar ao DOI-CODI, mas com estilo: chegaria de carro oficial, com o Reitor da Universidade, para uma audiência com o comandante do II Exército. Meu pai julgava que, nestas circunstâncias, iriam me soltar logo. Eu achei uma ótima oportunidade de envolver o Reitor na defesa de todos os estudantes e professores presos. E assim foi feito. Fui preso na sala do Comandante. Saí de lá escoltado, me puseram no banco de traz no carro da Polícia, deitado no chão, os pés dos soldados em cima de mim.

A tortura tem três fases: a psicológica, a física e a colaborativa. Na fase “psicológica” te colocam um capuz preto para você não enchergar nada e perder o senso de direção e localização. Ou te deixam nu ou te colocam um macacão. Nunca se dirigem a você pelo seu nome e de vez em quando te chingam, te empurram ou dão uma palmatória. É comum ficar em um lugar onde se escutam os gritos dos que estão sendo torturados. Te deixam assim uns dois dias, sem comer. Ao pedir água ou ir ao banheiro te atendem mas sempre chingando e empurrando. Depois de uns dois ou três dias começa o interrogatório e a fase “física”. Na fase “física” te tiram o capuz e te colocam em um quarto sem janelas com os devidos aparelhos de tortura que é a “pimentinha” (uma máquina de choque elétrico que amplia a voltagem conforme a rotação da manivela) e um tanque com água para as sessões de afogamento. Há também a “cadeira do dragão”, que não fui apresentado, mas me relataram ser uma máquina de choque elétrico, onde o indivíduo fica amarrado na cadeira. E também tinha o pau de arara, um cabo de vassoura sustentado por cavaletes, onde te dependuram pelos joelhos, com os punhados amarrados por trás, e a cabeça pendente e a bunda exposta para facilitar o trabalho dos torturadores. No meu caso, o interragatório foi simples. Me fizeram perguntas, me deram uns tapas nos ouvidos, e viram que eu não estava colaborando e estava muito tranquilo. Me colocaram em uma solitária por alguns dias. No próximo interragatório eu tive companhia. Trouxeram o Dirigente do Comitê Universitário do Partido, que foi me orientando a dizer tudo, não bancar o besta e assinar os papéis que eles quizessem, pois já haviam machucado gente demais. Falei então o que eles queriam ouvir, consegui esconder uma base que eles não sabiam da existência e que eu dava assistência e passei para a fase seguinte.

Enquanto esperava ir para a fase seguinte o “omelete foi feito” como disse um dos policiais torturadores. Herzog tinha morrido nos primeiros choques e tudo mudou deste dia em diante. Fui ainda interrogado no dia seguinte, por um oficial à paisana que, numa conversa tipo pai para filho me aconselhou a me afastar destes comunistas, que eles (os militares) já tinham matado todos os dirigentes e que “ontem matamos um aqui dentro”. Fiz a papelada da fase “colaborativa”, que nada mais é do que escrever a confissão. A seguir fui encaminhado para o DOPS, a delegacia de presos políticos, onde fui preso legalmente pois até então estava “desaparecido”.

Os planos de meu pai não eram esses. Achava que eu iria sair logo. Com o assassinato de Vladimir Herzog, também professor da USP, preso após ter se apresentado espontaneamente ao Exército, meu pai acabou inventando um plano para tentar me tirar da prisão. Pediu a interdição de um conhecido do meu cunhado que fazia parte de um grupo de segurança da coletividade judaica em São Paulo. Este acertou com os militares a minha libertação e não ida a julgamento, desde que eu servisse como testemunha de acusação contra um dos meus companheiros, o Sergio Gomes. Colocaram minha mãe e minha irmã para me fazerem a proposta. Quando entendi do que se tratava, olhei para minha irmã e disse que me chocava muito vê-la participando desta proposta. Ela caiu em si e puxou minha mãe para fora da sala. Eu ainda tive que ouvir umas babaquices dos policiais envolvidos na negociação, de que eu era comunista mesmo, e voltei para a cela, orgulhoso mas chorando. Na primeira visita que meu pai me fez na cadeia, ele me pediu desculpas por ter agido daquela forma e que eu tinha feito muito bem de não ter aceitado aquela negociação. Foi a única vez que eu vi meu pai pedir desculpas por algo que ele fêz.

Para mim, o resto da prisão foi uma bela escola de comunismo. Vivíamos 45 pessoas divididas em cinco celas. Havia uma dispensa coletiva, uma escola para o ensino supletivo, uma oficina para realizar artesanato em couro - para arrecadar fundos para aqueles que tinham que continuar a sustentar suas famílias, o jornal oral “O Parcial” e muita conversa paralela. Eu dormia no teto de uma cama beliche a uns 50 cm do telhado. Este “filhinho de papai” conheceu dirigentes operários, líderes de organizações de camponeses, ex-deputados, ex-vereadores, enfim, um mundo que antes desconhecia e que só pertencia ao meu imaginário. Um dos presos era o José Ferreira da Silva, o Frei Chico, irmão do Lula, e numa visita de fim de semana dos parentes é que tive meu primeiro contato com quem viria a ser o Presidente do Brasil.

Em fins de 1975 sai da prisão meio perturbado. Me sentia mais seguro e feliz lá dentro do que fora. As feras estavam soltas e os homens estavam presos. A vida tomou rumos estranhos, e meus pais resolveram controlar minha vida. A mulher que eu gostava era uma colega do Partido, que fugiu para o exterior, e eu só fui vê-la novamente 5 anos depois, com a Anistia aos presos políticos promulgada pelo Governo em 1980. Em 1976, entrei em depressão e quase que perco o ano na Faculdade. Prometi ao professor que, se me desse a chance de seguir adiante, iria fazer saúde pública, sem arriscar a vida de nenhum paciente. Passei de ano e fui fazer saúde pública como especialização.

A prisão provocou alguns efeitos inesperados. Fui procurado pelo Presidente da Associação de Servidores do Hospital das Clínicas, o HC, que se apresentou como um comunista perdido, e que estava feliz de saber que havia estudantes do Partidão tão perto. Escrevemos uma longa entrevista com ele, que foi publicada no jornal do Centro Acadêmico e distribuída para todos os servidores do HC. A Associação não tinha um jornal próprio. Em 1976 este dirigente organizou a primeira greve de funcionários públicos desde 1969 reivindicando aumento salarial. A greve foi massiva, muito bem organizada, vitoriosa e aquela entrevista foi o início do processo.

A Classe Operária

A classe operária

Em 1974, conheci o David Capistrano Filho, na época, um estudante de pós-graduação na Medicina Preventiva. Sabia que ele era do Partidão e sua busca pelo pai, que estava “desaparecido” após ter sido preso na fronteira do País, nos aproximou muito. Em 1978, como dirigente do PCB, ele me pediu para ajudá-lo na reconstrução do Partidão na região operária do ABC. Na região, só tínhamos conhecimento das pessoas presas pela ditadura: uma base da Volks, cujos integrantes haviam sido todos presos em 1972, e alguns dos meus contemporâneos de prisão. Um outro ponto para iniciar era a Associação dos Metalúrgicos Aposentados de Santo André, onde não ocorreram prisões. Comecei a visitá-los, um a um, a partir dos já conhecidos. Em 1980 já tínhamos bases nas principais cidades da Região, mas sem grandes lideranças, com exceção de São Caetano.

Em 1979, finalizada a graduação, casei e fui prestar serviço militar como médico. Um erro deu a pista de que eu ainda estava em atividade política para os órgãos de segurança. Fui expulso e fiquei desempregado da noite para o dia, com minha esposa na primeira gravidez (ela acabou perdendo esta gravidez por aborto espontâneo a seguir à minha expulsão), e com uma dívida que contava pagar com meu salário de oficial militar médico. Ao saber desta história, em um ato de solidariedade, um colega médico do Partidão me ofereceu seu emprego no Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André. Foi a primeira vez que eu encontrei o Gastão Wagner Campos, futuro Secretário Executivo do Ministério da Saúde.

Em 1980 mudei para São Caetano do Sul. Trabalhava pela manhã no Centro de Saúde de São Bernardo no Programa de Hanseníase e a tarde no Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André como Clínico Geral.

Me especializei em medicina do trabalho e era programa do Partidão introduzir a medicina do trabalho em Sindicatos. A medicina do trabalho em Sindicatos ajuda a organização do Sindicato pelas bases, pois cada local de trabalho tem um risco específico. Estabelece a possibilidade de reivindicações ao longo de todo o ano, ao contrário das reivindicações salariais que acontecem somente uma vez ao ano. Amplia a consciência sanitária dos trabalhadores, principalmente daqueles que passam a monitorar as condições de trabalho pelo programa de medicina do trabalho do Sindicato.

O primeiro Sindicato ao qual fomos (David Capistrano e mais uns quatro companheiros da medicina do trabalho) expor esta idéia, foi o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, presidido por Lula. Ele e seus colegas de Diretoria ouviram mas não aprovaram a idéia (não queriam a nossa presença dentro do sindicato). Aproveitei uma mudança de Diretoria no Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André e fiz esta proposta. Para minha surpresa aceitaram sem hesitação. No quarto dia que exercia a função de Médico do Trabalho do Sindicato, lançei o programa através de uma panfletagem na porta das principais fábricas e apareceu minha foto vestido de branco na porta de uma fábrica na primeira página do jornal de maior circulação da região, Diário do Grande ABC. Na tarde deste mesmo dia, a Polícia Federal ligou para o Sindicato que me despediu logo a seguir.

Por quatro dias fui o primeiro Médico de Trabalho de Sindicato do Brasil. A seguir o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo adotou este programa. Mais tarde, o Sindicato dos Metalúrgicos de Guarulhos me chamou para implantar este programa. Um ano depois, o Sindicato do Lula adotou este programa também. Infelizmente, após a democratização, a medicina do trabalho em Sindicatos foi minguando e não tenho mais notícias desta atividade em qualquer Sindicato.

Em São Caetano, passei a ser o chofer do líder da oposição sindical, aquele que iria ganhar a próxima eleição do Sindicato, o Frei Chico. Através dele e de seu grupo passei a viver o nascimento do movimento operário no ABC.

A primeira greve dos metalúrgicos foi em 1979 sob a liderança de Lula. Após 1964 todos os Sindicatos sofreram intervenções e seus dirigentes foram indicados pelas empresas e tinham a aprovação dos órgãos de segurança. Sao Bernardo não era exceção. Quando Lula virou dirigente sindical pela primeira vez, o Presidente de sua chapa era um destes dirigentes indicados, que eram chamados de “pelegos” pela esquerda. A partir desta composição ele se candidata a presidente do sindicato em substituição a este dirigente pelego. Em 1978 surge a Revista Isto É, sobre a direção de Mino Carta, que tem acesso a informações censuradas e privilegiadas devido a suas ligações com o General Golbery, mentor da transição da ditadura rumo a democracia por dentro do regime. Esta revista se torna a mais lida pelo mundo político. Em 1979, quando Lula já é Presidente do Sindicato, a primeira greve por aumento salarial é lançada, dura pouco e é vitoriosa. Lula vira capa da revista “Isto É” e é lançado por esta revista como líder do novo sindicalismo e do movimento operário. O aumento de 8% no salário foi repassado aos consumidores logo a seguir. Tínhamos poucas pessoas em São Bernardo mas um companheiro da fábrica Voigt, nos contou que a greve nesta empresa foi organizada de cima para baixo. Os supervisores foram ao chão da fábrica tirar os trabalhadores de seus postos de trabalho pois eles deveriam estar em greve de acordo com o Sindicato.

O Partidão tinha um “quadro”, um militante especial, no movimento metalúrgico que trabalhava em São Paulo. O Newton Candido conseguiu ser transferido para São Bernardo. Na sua primeira intervenção em uma Assembléia do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, rachou a votação contra uma proposta do Lula. No dia seguinte a Polícia Federal esteve na fábrica e ele foi removido de volta para São Paulo.

Para nós tudo era muito confuso. De um lado havia uma orquestração de lançar um sindicalismo a partir do ABC de tipo social-democrata para substituir o vácuo que os comunistas ocupavam no movimento sindical antes de 1964. Por outro lado o movimento grevista era genuíno e de massa. Na campanha salarial de 1980 os comunistas do ABC participaram ativamente, e apoiaram o prolongamento da greve após a prisão de Lula.

Chegou o dia para a eleição no Sindicato dos Metalúrgicos de São Caetano. Nossa chapa encabeçada pelo Frei Chico, irmão de Lula, líder da greve em São Caetano tinha uns 90% de apoio do eleitorado conforme nossas previsões. Eu estava na porta do sindicato na noite após as eleições quando chegaram carros com gente desconhecida (provavelmente a Polícia) e trocaram as urnas na nossa cara. No dia seguinte o pelego continuou no Sindicato depois de uma vitória de 90% dos votos contra a chapa do Frei Chico. No meio do bate boca que se seguiu um deles gritou: “lugar do Partidão é em São Paulo, aqui no ABC vocês não entram.” Todos os integrantes da chapa nunca mais conseguiram emprego em São Caetano, inclusive o Frei Chico.

A primeira assembléia cuja pauta era a formação do PT no ABC ocorreu em Santo André que estava com a direção de um dirigente pelego, ainda da época da intervenção nos Sindicatos. São Bernardo apoiou oficialmente a proposta meses depois. Neste ínterim fui enviado em nome de Alberto Goldman, na época Secretário Executivo do PMDB, para falar com Lula sobre a possibilidade dele criar e dirigir o Departamento Trabalhista do PMDB. Levava comigo 1.500 fichas de filiação. A política do Partidão ainda era a do fortalecimento da frente anti-ditadura até as primeiras eleições diretas a Presidente, ocasião em que lançou candidato próprio (Roberto Freire). Pedi a Lula uma conversa a sós. Ele me atendeu e após explicar do que se tratava, ele abriu a porta da sala em que estávamos, chamou todos os demais membros da Diretoria, expôs o que se tratava, e daí em diante foi só gozação em cima da proposta e em cima de mim. Ali, ficou claro para mim, que o Sinticato do Lula nao queria ser manobra de um sistema político já estabelecido, e que já estavam comprometidos com um projeto político próprio. Saí de lá sem saber se fui eu que joguei as fichas de filiação no lixo ou se foi o Lula logo depois.

O PT concorreu às eleições de 1982 com Lula candidato a Governador. O Partidão apoiou Franco Montoro, mas no ABC apoiou Lula. Apesar de ser a política do Partidão apoiar candidatos da frente democrática, não podíamos nos descolar do movimento real que estava acontecendo no ABC (a construção do PT).

A vitória de Franco Montoro abriu muitas possibilidades para membros do Partido ocuparem cargos de direção na máquina do Governo. Muitos que optaram por estes cargos nunca mais voltaram à militância política. Aconteceu nesta época o mesmo que aconteceu com a vitória do PT em 2002. Muitos jovens chegando ao poder, substituindo antigos funcionarios, mas sem saber o que fazer para mudar o status quo (além de um monte de reuniões de planejamento).

Em 1983 já estou de volta em Sao Paulo, e tenho a oportunidade de trabalhar como professor universitário. A anistia política trouxe de volta antigos dirigentes do Partido, entre eles o velho Prestes. A entrada das idéias contrárias à democracia, “coisa de burgueses”, culminou com uma luta interna e conseguiu o que nem a Ditadura conseguiu, a destruição do pouco que havíamos organizado. O grupo de militantes sob a liderança de David Capistrano adota a medida de se diluir dentro do PT, sem manutenção de identidade de facção. Eu aproveito minha ida para a Universidade e adoto o “Partido Universitário” como meu novo partido, ou seja, um professor universitário deve ser militante da ciência e lançar sempre perguntas aos alunos, diferente do que fazem os Partidos que disputam o poder, que vendem soluções prontas ao público.

Fim do Socialismo

Fim do socialismo

Em 1984, quando eu estava em viagens de estudos na Itália, Almir, meu companheiro de colégio e Partidão, morava em Moscou. Ele tinha casado com uma brasileira que conheceu lá e teve uma filha. Almir havia ido a Moscou para estudar na Universidade Patrice Lumumba. Era um sonho que ele queria realizar enquanto estudava engenharia no Brasil. Ele conseguiu um visto como parente para eu poder entrar na União Soviética e ficar em sua casa. Não perdi a oportunidade. Fui até Budapeste de trem onde participei como observador de uma reunião da seção de Trabalhadores da Saúde da Federação Sindical Mundial (junto com o Julio Cesar Pereira que também estava em Milão) e de lá fui de avião para Moscou.

Como cheguei um dia antes da data de entrada autorizada no meu visto, fiquei no saguão do aereoporto até dar meia noite para poder passar pela alfândega. Na alfàndega tive que explicar que um programa de computador escrito em Cobol, lingugem de programação, que fazia parte de meus estudos na Italia, não era nemhum codigo secreto. Depois de um longo interrogatorio, me deixaram entrar.

Em Moscou o verbo mais importante era o “conseguir”. As pessoas saiam sempre com uma cesta na mão pois não sabiam que oportunidade um caminhão parado na rua ou uma loja poderia lhes proporcionar naquele dia. Tinham dinheiro no bolso, não tinha inflação, mas não tinham acesso a produtos. Quando aparecia uma oportunidade faziam fila, rezando para que o produto não acabasse quando chegasse a vez deles.

O Almir, como estrangeiro, e os funcionários de alto escalão tinham a mordomia de fazer compras em uma Berioska, loja especial onde havia maior oferta de produtos e não havia filas. Só que um cidadão russo normal não podia entrar lá dentro.

Vi gente morando em apartamentos sem cozinha e banheiro (estes eram coletivos por andar), vi a classe operária bêbada nas ruas de domingo a tarde, vi o tratamento desumanizado dos hospitais, vi sabotagem no processo de embalagem de produtos. Ao pedir um xerox de uma página de revista, me providenciaram uma foto desta página, pois os estudantes eram proibidos de ter acesso a máquina xerox.

Quando estava voltando de Moscou para Budapeste de trem (dois dias de viagem), ao cruzar a fronteira (já era madrugada), pedi para descer do trem para trocar rublos (moeda Russa) para dólares. Desci somente com a roupa de ginástica que usava para dormir e o papel de autorização para trocar os rublos na mão. Deixei mala, documentos e dinheiro no trem. Ao entrar na estação, tomei conhecimento que não havia banco aberto àquela hora e ao voltar a plataforma, não encontrei mais o trem. Estava sozinho, de pijama, sem documentos, sem roupa, na fronteira da União Soviética e Hungria. Encontrei o oficial que me autorizou a descer do trem, mas ele não falava inglês. Ele só fazia o sinal de paz e amor com a mão, pegou meu dinheiro em rublos, colocou-os no bolso dele, me deu um outro pedaço de papel escrito em russo, me conduziu a uma cadeira no saguão da estação e fêz o sinal de paz e amor de novo.

Uns 20 minutos depois, extremamente tenso, boca seca, vejo dois soldados atravessando o saguão com minhas mochilas. Pulo nos pés deles e as agarro como se estivesse em um jogo de futebol americano. Eles me levam até a “fronteira” e me atravessam para o lado húngaro do saguão e de novo algumas palavras e o sinal de paz e amor. Meus documentos e dinheiro estavam todos lá. Em duas horas um novo trem rumo a Budapeste chegou. Entendi finalmente que o sinal de paz e amor queria dizer duas horas. Entrei neste trem e consegui chegar finalmente a Budapeste. depois de terem ameaçado me jogar fora do trem por não ter comprovante de passagem, recolhida no trem anterior.

Voltei ao Brasil sabendo que o socialismo real havia falido. Com o fim da União Soviética em 1989, tudo isto veio a público, mas na época eu temia falar do que vi para os comunistas brasileiros que ainda acreditavam na “vitória do socialismo”.

Já no Brasil, da Universidade, acompanhava o movimento pela Reforma Sanitária, em particular a bandeira da municipalização da rede básica de serviços de saúde. Acompanhei o David Capistrano que se torna Secretário de Saúde de Bauru quando Tuga Angerami foi prefeito pela primeira vez, e o ajudei a desenvolver programas para transformar Bauru na vitrine do que estávamos propondo para o resto do país.

Surgiu o PSDB em 1988 e apoiei seu primeiro candidato a prefeito de São Paulo, Fabio Feldman, que trouxe pela primeira vez para o momento eleitoral a discussão da ecologia como uma alternativa de política para o Brasil.

O fim da ditadura e o a redemocratização foram frustrantes. Apoiei a eleição indireta de Tancredo Neves enquanto o PT se absteve de participar desta votação. Porém, não contava com sua súbita morte e a manutenção do poder pelo oligarca Sarney. Inflação, corrupção e a crescente violência continuavam sem controle. Acreditava que com liberdades democráticas o PT ganharia a primeira eleição direta no Brasil e o desaparecimento de partidos clientelistas e corruptos seria muito rápido.

Simpatizei com a criação do PSDB por ser a banda não podre do PMDB, mas me senti traído com a aliança que fizeram com a oligarquia do PFL como atalho para chegar ao poder. Advogava que questões de princípios eram mais importantes que abrir mão deles para ter acesso ao poder. Era melhor uma oposição coerente, mesmo que o caminho fosse mais longo, que uma situação cheia de compromissos que deixasse de ser uma fonte de educação para o povo.

Em 1989 me foi oferecida uma bolsa de pós-doutorado no Canadá. Voltei em meados de 1991, para acabar aplicando como imigrante na primeira semana após a volta. Tive uma verdadeira crise de re-entrada no Brasil. Na Faculdade voltei a fazer fila para usar o computador, e ninguém queria saber o que aprendi lá, mas queriam saber se tinha ficado rico. Minha esposa caiu na mão das enfermeiras chefes que ela sempre brigava quando ela era da Diretoria da Associação dos Servidores do Hospital das Clínicas, que passaram a lhe dar os piores plantões. Meu filho, com 12 anos, sofreu uma tentativa de abuso sexual no elevador de nosso prédio. Lá fora Collor era o Presidente. Retornei ao Canadá com minha familia, já como imigrante, em 1993.

Para decifrar o Canadá, o marxismo não ajudava. O Canadá é a prova da possibilidade de conciliação de classes em um regime social-democrático. Aprendi que democracia não é o direito da maioria sobre as minorias, mas sim o direito das minorias asssegurado pela maioria. Ao contrário da sociedade dos Estados Unidos que tem a liberdade e autonomia como objetivos principais a serem atingidos (só possível com incremento do individualismo), a sociedade Canadense tem a paz e o bom governo como principais objetivos a serem alcançados (só possível com incremento do coletivismo). Aprendi que em uma sociedade formada com este tipo de Estado, surge um Homem novo, aberto a enxergar e respeitar o próximo. Em uma sociedade destas não há como se repetir um Holocausto ou qualquer outra segregação por razões étnicas. Em uma sociedade como esta, não há necessidade de uma jovem vender sua afetividade para criar os filhos dos outros na casa dos outros. Consegui encontrar as respostas às questões que me afligiam desde criança.

No Canadá aprendi a gerenciar o serviço público, a diferença entre políticas de governo e políticas públicas e a importância para a sociedade de instituições públicas sólidas e eficientes.

Mas meu olhar não fugia do Brasil. Tudo que via e aprendia era estimulado pelo sonho de voltar e poder aplicar todo o conhecimento no Brasil. Após 7 anos a saudade foi maior que tudo. Eu me julgava maduro para voltar. Entendi melhor a reforma no Estado que o Presidente Fernando Henrique estava fazendo, particularmente em seu segundo mandato e entendi a importância do Plano Real para o controle da inflação. Eu estava separado de minha esposa e, de novo, o David Capistrano me convocou para irmos juntos para Brasilia, onde iria ocupar o espaço que o Ministro da Saúde José Serra estava lhe oferecendo.

Voltei ao Brasil em junho de 2000 para trabalhar em Brasilia no Departamento de Ciência e Tecnologia, o Decit, do Ministério da Saúde. Inicialmente iria trabalhar no Sistema de Atenção a Saúde (SAS) que cuidava da rede hospitalar vinculada ao Sistema Único de Saúde, o SUS. Neste meio tempo, entre o convite e meu deslocamento, houve uma troca de arranjos políticos e a SAS foi entregue a um outro grupo político. Nesta época não havia concursos, tudo era na base de cotas de cargos visando a atender acordos políticos. O David não oferecia votos ao Governo no parlamento e nem dinheiro para financiar campanhas. Estou convencido que Serra chamou o David, e lhe ofereceu uma cota de cargos a serem preenchidos, por respeito a ele como pessoa e para ter mais um expoente do movimento pela reforma sanitária em seu comando. Acredito que o Serra tem um compromisso com a administração pública e a modernidade que o faz se cercar de bons técnicos. Ele tem inteligência para saber conduzir os técnicos e não ser conduzido. Este compromisso com a boa administração e seu restrito balcão de negócios o tornou uma pessoa não confiável para políticos corruptos e acostumados com o tráfico de influência. A comprovação desta tese foi o boicote a sua candidatura a Presidência dentro do PSDB.

Encontrei David Capistrano doente. Cheguei em julho e em agosto ele entrou em coma, quando estava a trabalho em Vitória da Conquista, Bahia. Após recuperação fomos jantar fora e conversamos sobre a morte. Ele já tinha desisitido de brigar pela vida. Lhe coloquei que ele não tinha o direito de morrer enquanto sua mãe fosse viva. Ela já havia perdido o marido em condições trágicas e seria muito difícil suportar a morte de seu único filho homem. Chegamos a conclusão que ele deveria fazer um transplante de fígado entre vivos já que não havia mais tempo para esperar um transplante de um morto, devido o tamanho da fila.

Com a ajuda de outros colegas de São Paulo, acabamos escolhendo o hospital e a equipe médica. O cirurgião, Paulo Chapchap, é colega meu de ginásio, colégio e faculdade. O Sergio Gomes se comprometeu a ser o doador, mas nos exames iniciais foi descartado. Suas irmãs não podiam ser doadoras. Sobrou seu filho mais velho. Coloquei a situação da esposa de David de ter marido e filho no centro cirúrgico ao mesmo tempo para o Paulo e resolvi entrar como doador também e fazer exames junto com o filho. No meio do caminho o filho foi descartado e eu acabei na mesa de operação. David ficou 18 horas em cirurgia e eu 10 horas. David se saiu bem do ato cirúrgico. Comemoramos em seu quarto sua sobrevivência e ele voltou a fazer planos de futuro. Eu acabei tendo uma fístula hepática infectada que durou 4 meses. O tratamento foi uma fase muito difícil pois minha família era contra esta cirurgia e, quando tive complicações, sobrou para eles tomarem conta de mim. Por um mês, tive que ir todos os dias ao Hospital para limpeza do catéter (tubo de ligação da fístula com o meio exterior que drenava o líquido em um saco plástico que estava grudado no meu corpo). Ia de taxi e a cada buraco das ruas de São Paulo, sentia o catéter se mechendo em meu abdomem causando dor. Era comum ter episódios de tremor, calafrio e febre (por bacteremia). Quanto ao David, no décimo quarto dia após a cirurgia ele foi para a Unidade de Tratamento Intensivo com uma infecção e nunca mais voltou. Ele morreu depois de dois meses.

Durante minha recuperação, minha filha, com 18 anos, acabou voltando do Canadá e ajudou a remontar minha vida em Brasilia após minha alta. Já em Brasília retornei ao trabalho, transferido do Decit para a Agència Nacional de Vigilância Sanitária, Anvisa.

A partir de meados de 2005, começei a ter dificuldades de interferir nos rumos políticos e técnicos da Anvisa, agência regulatória do Ministério da Saúde, onde cheguei a ser Diretor-Adjunto. O debacle da Anvisa já vinha acontecendo. O PT era contra as agências regulatórias. Quando da formação da Anvisa, seus militantes votaram contra a existência da Anvisa na primeira Conferência Nacional de Vigilância Sanitária. A Anvisa entrou no balcão de negócios do PT e seus cargos de Diretor viraram moeda de troca. Na primeira troca de comando no Governo Lula, entraram dois novos diretores, um nomeado pelo PMDB e outro pelo PP. A seguir veio um indicado pelo PT e outro pelo PMDB. Nenhum deles deve sua ascenção ao Diretor-Presidente da Anvisa. Como consequência, o processo de decisão passou a ser fragmentado: cada Diretor toma conta de seu “negócio” e negociam para que um não “atrapalhe” o outro. Desapareceu o intelectual coletivo e estratégico que um grupo de diretores de uma grande instituição pública ou privada deveria ser.

Em 2005, as denúncias e detalhes do processo de corrupção envolvendo o PT me atingiram psicologicamente. Pela mesma razão que me senti traído com a aliança de Fernando Henrique com os oligarcas só para chegar ao poder, o mesmo senti com o PT. Ficou claro para mim que a governabilidade no Governo PT foi conquistada através do uso de recursos públicos para alimentar compra de votos no legislativo e fazer a caixa dois do PT e aliados. Não foi o PT que inventou esta modalidade de corrupção, mas tinha a esperança que uma vez no poder esta corrupção de governos anteriores viria a público pelo próprio PT e que a governabilidade fosse alcançada confiando na massa de eleitores que o Lula tem e na sua mobilização. O Lula foi pragmático. Em nome da possibilidade de políticas compensatórias visando a ascenção social de camadas socio-econômicas mais desprovidas da sociedade a curto prazo, o PT aceitou e se envolveu na forma corrupta de manejo do bem público no Brasil. Este pragmatismo pode até ajudar a manter um governo, mas não a construir um País.

Corrupção é causa de perpetuação e criação de novas injustiças e é um antidoto a eficiência do Estado. A quebra de valores éticos na sociedade faz com que todos vejam o Estado somente como uma fonte de recursos a serem apropriados e não também uma máquina para orquestrar a criação de riquezas (de preferência em um modelo sustentável). O crescimento econômico só terá sucesso com a retomada da ética na sociedade e eficiência na gestão dos recursos públicos. Vamos pagar um preço altíssimo pela quebra da ética.

Há a necessidade de quem está em cargo público dar o exemplo. A ascenção de classe social dos filhos de pais pobres, que passaram necessidades, é legítima. Porém, acho que isto deve ser feito antes de entrar e depois de sair do governo, e não durante o período em que estão no governo. È que nem casamento: “ficar” com mais de uma pessoa antes ou depois de um casamento é aceitável, mas fazer isto durante um casamento é traição à confiança depositada pelo outro (ou pelos outros no caso de eleições). Infelizmente no Brasil, prevalece a cultura de quem passa pelo governo deve “se arrumar”. Tinha a expectativa de que os políticos do PT seriam diferentes.

Um aspecto positivo da vitória de Lula é a chegada ao poder do primeiro presidente brasileiro oriundo das camadas mais pobres da população. Com sua vitória Lula aumentou a auto-estima do povo brasileiro. È muito bom que o Lula, o Evo Morales, o Hugo Chaves tenham chegado ao poder, como será muito bom que um dia o futuro Presidente dos Estados Unidos seja um negro. Mas isto somente não é suficiente.

Quando o PT ganhou a eleição para a Prefeitura de São Paulo em 1982 com Luiza Erundina, acabei participando de um curso de formação de sanitaristas que a Prefeitura estava promovendo. Na época, a Faculdade de Saúde Pública tinha seu curso e um processo de seleção público de alunos. A Faculdade aceitou participar do treinamento da Prefeitura dando o mesmo curso, só que a seleção quem fazia era a Prefeitura. Duas funcionárias da Prefeitura, que não eram do PT, entraram no curso da Faculdade mas não foram indicadas para fazer o curso da Prefeitura. Precisavam de liberação do trabalho para fazer o curso da Faculdade e pediram minha interdição para ajudá-las a resolver este impasse. Falei com um dos responsáveis pela Secretaria de Saúde da Prefeitura sobre o caso. Ele me disse que somente os selecionados pela Prefeitura poderiam ser afastados para fazer o curso e eu retruquei que a Faculdade estava dando um curso para alunos que ela não tinha selecionado, que a seleção deles tinha sido por indicação das chefias e que eles estavam fechando o processo de seleção de futuros sanitaristas da Prefeitura para quem era do PT. O colega me respondeu: “que é isso companheiro? Agora chegou a nossa vez.” Ainda bem que no final as duas funcionárias foram liberadas para fazer o curso da Faculdade.

Enfim, é bom ter um Presidente operário, mas o PT não pode atuar como “agora é nossa vez”. È importante trazer parcelas excluídas da população para o processo político, mas este processo não deve se resumir a um assalto ao Estado. Temos que ter governos que pensem no futuro da próxima geração e não nos benefícios da atual.

Por exemplo, o governo priorizou reparar uma grande injustiça: o filho de rico que estudou em escola particular entra na faculdade pública e o filho do pobre que estudou em escola pública entra em faculdade particular. O Prouni veio reparar esta injustiça. Esta é uma medida a curto prazo que se não for acompanhada de medidas estratégicas na área de educação não nos tirará do subdesenvolvimento e não resolverá o problema de criar empregos para todos os formandos. O governo PT cria fóruns para o debate de soluções estratégicas para o País mas não tem um plano próprio de desenvolvimento a longo prazo para apresentar ao País.

O PSDB, que poderia ser uma alternativa de poder, ainda não é um partido moderno. Sua direção não se compromete com seus eleitores com uma visão de futuro para o País. Não tem sequer um gabinete de oposição, que faça marcação homem a homem com os ministros que estão no Governo (o gabinete de oposição é uma das caracterísitcas do parlamentarismo que eles mesmo advogam como um modelo de governo ideal). Em vez de eleições internas entre os militantes do partido para escolher o candidato a Presidente, optam por manobras “palacianas” que tiraram do páreo o único candidato que tinha chances de disputar as eleições contra o PT em 2006, José Serra.

Em 2005, Rodrigo Dittz e eu resolvemos nossa falta de referência partidária: criamos o nosso Partido, o “Partido da Faixa”, onde um é pouco, dois é bom e três é demais. Em três corre-se o risco de luta pelo poder, dissidèncias, etc. Para segurar uma faixa dois são suficientes.

Nossa primeira participação foi em um comício que tratava da reforma política como solução para o caixa 2 (ou dinheiro não contabilizado como diria o PT). Erguemos nossa faixa “Eleição barata para acabar coma mamata”. Não tinha a assinatura de organização nenhuma e nem cores de partido algum. Fomos abordados por vários veículos de imprensa, mas eles só queriam saber se estavamos contra ou a favor do Governo. Explicávamos que não se tratava de manifestação nem contra nem a favor do Governo, mas da necessidade de uma reforma política no País se não a corrupção eleitoral continuará a se repetir em qualquer governo. No dia seguinte nenhuma linha na imprensa, toda envolvida na campanha de desgsaste do atual Governo. Talvez, toda esta manipulação por parte da imprensa tenham afastado os jovens deste embate, mas ainda espero ver no Brasil o dia em que os jovens irão liderar a luta contra a corrupção e pela reforma política no Brasil sem servirem de joguetes a qualquer Partido.

Tive a oportunidade de estar no poder e sentir o quão é verdadeiro que todo o poder absoluto corrompe absolutamente. Sem manifestação pública por parte da população por uma reforma política que impeça a propaganda na mídia e que impeça que candidatos de mesmo Patido concorram entre si, acho que é impossível avançar na construção da Democacia no Brasil. Sem diminuição dos cargos preenchidos por indicação política, tanto no executivo quanto no legislativo e judiciário, a luta pelo poder e o número de mordomias associadas ao exercicio do poder continuarão a fazer da vida política no Brasil um balcão de negócios.

Não tenho mais fôlego para a luta pela reforma política e administrativa do Estado. Acreditei que a esquerda no poder ia por o Brasil no mundo civilizado. Espero que os jovens acordem e ajudem a acordar o Brasil.

Saúde Pública

Saúde Pública

Meu primeiro emprego foi o de Médico Dermatologista da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo em 1980. Este ano foi um ano especial para o programa de controle da Hanseníase. A introdução do antibiótico rifampicina permitiu a cura definitiva da Hanseníase pela primeira vez. Começamos a estabelecer protocolos de alta para pacientes e seus familiares íntimos. Muitos tinham feridas na sola dos pés por falta adequada de tratamento (mal perfurante plantar). Consegui acabar com este mal em todos os meus pacientes. Para não haver recidivas, há a necessidade de sapatos e palmilhas especiais, e não tínhamos como oferecè-las. Nesta hora apareceu uma carta do Francisco Augusto Vieira Nunes, o Bacurau, de um Hospital em Bauru relatando a criação do Movimento de Reintegração do Hanseniano, Mohan.

A cada duas semanas todos os médicos envolvidos no programa de controle da Hanseníase de todos os Centros de Saúde da Região do ABC tinham um encontro técnico. A cada encontro um de nós era encarregado de conduzir a reunião. Na maioria das vezes discutia-se um artigo científico que o encarrregado do encontro escolhia e providenciava cópias para os demais. Chegou minha vez e eu não tive tempo de escolher um artigo científico para a reunião. Tirei a carta do Bacurau da minha pasta e comecei a lê-la. Aleguei que não adiantava o nosso esforço como técnicos para melhorar o programa se os principais interessados, os pacientes, não mostrassem sua face e não passassem a reivindicar uma infraestrutura adequada que nos permitissem exercer nosso trabalho da melhor forma possível. No final desta reunião, decidimos convocar todos os pacientes dos Centros de Saúde da região do ABC para uma Assembléia e convidamos o Bacurau para presidi-la. Na agenda, a criação do Mohan no ABC e a reivindicação para a criação de uma oficina ortopédica por parte do Estado. Apareceram uns 500 pacientes e familiares. Perdemos uma reunião técnica, mas ganhamos um salto na qualidade do tratamento dos pacientes na região.

O Bacurau ficou tão satisfeito com a Assembléia que não voltou mais a Bauru. A sede do Morhan passou a ser em São Bernardo e este movimento passou a editar um jornal. Eu e o José Rubens, chefe do Centro de Saúde de São Bernardo, viramos assistentes técnicos. O Morhan passou a agregar todas as colônias de hansenianos e até hoje exerce uma importante ação política na defesa dos mais excluídos pela sociedade.

O que sempre guiou minhas ações em saúde pública foi a participação ativa dos principais interesados, a população ou grupo de doentes, na defesa de sua saúde ou no controle de suas doenças, que poderia ser resumida no termo “consciência sanitária”. Este termo foi cunhado pelos italianos, mas tem como origem os ensinamentos pedagógicos de Paulo Freire. Cheguei a participar da primeira Conferência de Promoção da Saúde em Toronto, Canada, em 1990. Nesta conferência estavam procurando um termo em inglès que refletisse a “conscientização para ação” de Paulo Freire. Mais tarde alguém na América do Norte propôs o termo “empowerment” para este conceito. É irônico que hoje, no Brasil, “empowerment” é traduzido por “empoderamento”, em vez de “conscientização para a ação” ou “consciência sanitária.”

O movimento hoje denominado de “Promoção da Saúde” tem os mesmos objetivos a alcançar na comunidade em geral que o movimento de saúde ocupacional promovido pelos sindicatos filiados ao Partido Comunista Italiano. A historiografia oficial da “Promoção da Saúde” começa em 1986 com a Carta de Ottawa, mas os comunistas italianos já faziam a mesma coisa na década de 70.

Fui médico do trabalho do Sindicato dos Metalúrgicos de Guarulhos de 1982 a 1985. Nesta função dava cursos de treinamentos para representantes dos trabalhadores nas Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (CIPA), editava uma revista de saúde para manter um contato permanente com os cipeiros e demais interesssados nas questões de saúde e segurança, participava de processos judiciais que o Sindicato impretava a favor de trabalhadores vítimas de acidentes e doenças ocupacionais e era médico de referência para os clínicos gerais em doenças ocupacionais.

Antes da reforma sanitária italiana, os serviços de segurança e higiene do trabalho pertenciam aos sindicatos, sendo um importante instrumento de fortalecimento sindical e defesa da saúde de uma parcela significativa da população. Com a reforma sanitária estes serviços se tornaram públicos, incorporados pelas secretarias de saúde de governos, perdendo o vínculo com os sindicatos. No Brasil foi feito o mesmo movimento. Se tivéssemos mantido o que havíamos construído em alguns poucos Sindicatos e ampliado aquele trabalho, teríamos hoje mais políticas de prevenção. O enfoque curativo acabou prevalecendo, os sindicatos perderam um instrumento de fortalecimento, e a política de prevenção de doenças e acidentes se enfraqueceu.

Em 1984 surge a oportunidade de ir para Milão, Itália, fazer uma espécie de internato na Clinica Del Lavoro Luigi Devoto, que é um centro de pesquisa importante em segurança e higiene do trabalho e que foi um hospital especializado em doenças profissionais, o primeiro, fundado em 1904. Éramos oito brasileiros, sete médicos e uma socióloga, ligados direta ou indiretamente ao David Capistrano, que através da amizade que tinha com Giovanni Berlinguer, grande sanitarista, na época Senador no parlamento italiano, conseguiu criar esta oportunidade de treinamento para pessoas envolvidas com a medicina do trabalho em Sindicatos.

Quando chegamos em Milão, tivemos dificuldade de inserção nos Departamentos desta Clínica. Fomos impostos a eles pelo governo, mas eles não tinham uma estrutura para atender estudantes em estagiáios de curta temporada. Alguns de nós desistiram e resolveram ir passear. Um deles chegou a me dizer: “Não fique angustiado. Quando você voltar ao Brasil continue dizendo as mesmas besteiras que você falava antes, só que você diz que aprendeu na Itália e todos vão acreditar.” Este não era meu espírito. Todo dia ficava na porta do serviço de Epidemiologia esperando o chefe entrar, dizia “Bom Dia” e ia para a mesma porta esperá-lo a sair para dizer “Boa Noite”. Na segunda semana ele me convidou para entrar. Sentei em frente a ele e já fui falando: “Está muito difícil para mim ficar aqui. Sou casado, tenho dois filhos pequenos no Brasil e vim aqui para aprender alguma coisa”. Ele levou um susto e daí em diante passei a ser muito bem recebido por ele e sua equipe. Piero Alberto Bertazzo, passou a me levar em todos os lugares e reuniões em que ia. Foi uma ótima oportunidade de aprendizado.

Através do Piero entrei em contato com a nascente Epidemiologia Clínica que veio a se transformar na Medicina com Base em Evidências. De volta ao Brasil, eu e mais três colegas, estudantes de pós graduação de epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública criamos um grupo de estudos e lemos a primeira edição do livro do casal Fletcher e do Edward Wagner sobre Epidemiologia Clínica. Em Porto Alegre haviam dois professores, o casal Bruce Duncam e Maria Inês Schmidt que introduziram o assunto na pós-graduação da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nós quatro fomos fazer um curso intensivo de uma semana com eles. Juntos passamos a divulgar este curso em São Paulo e outras cidades brasileiras. Ao cabo de dois anos, Bruce e Maria Inês, com nossa ajuda, já haviam treinado quase 600 profissionais em Metodologia de Pesquisa Clínica.

Minha dissertação de mestrado tinha que estar conectada com a possibilidade de aumento da consciência sanitária de algum grupo. Trabalhei dados de mortalidade por ocupação, agregando-os por classe social, respeitando a estrutura sindical brasileira. Parte desta pesquisa foi financiada pela Federação dos Sindicatos Metalúrgicos de São Paulo e seu resultado acabou sendo divulgado pela revista “Veja” causando uma grande repercussão. Este trabalho foi desenvolvido contra a corrente. A moda era classificar as pessoas em classes sociais do ponto de vista marxista (burguesia, pequena burguesia, proletariado urbano etc) para utilizá-las em estudos a serem desenvolvidos em uma nova “epidemiologia social”. Muitos sanitaristas adotavam a auto-denominada epidemiologia social como a versão latina da epidemiologia, contra a epidemiologia dos americanos. Muitos viram nosso trabalho com a epidemiologia clínica como uma manobra do imperialismo para solapar a nascente epidemiologia social, que através de seus achados iria, pela pedagogia, conscientizar os estudantes da necessidade de libertar os oprimidos latinos do imperialismo americano. A minha descrição de desigualdades sem utilizar categorias marxistas e minha participação na promoção da epidemiologia clínica não foi bem recebida nos meios acadêmicos de medicina preventiva onde preponderava a esquerda dogmática.

Em Bauru, entre 1985 e 1987, montamos a Comissão de Investigação e Análise de Óbitos Infantis. Todas as mortes no primeiro ano de vida eram investigadas em profundidade, inclundo visitas domiciliares e autópsias quando necessário. Uma vez por mês reunia a população de um bairro para discutir com as mães os achados de nossas investigações. O objetivo era ampliar a consciência sanitária delas no trato dos risco a saúde infantil. Uma ocasião, em um bairro, eu era o único homem na sala da Associação de Moradores e começou uma discussão se aleitamento materno fazia o “peito cair” ou não. Algumas esposas jovens alegavam que seus maridos iriam largá-las se elas amamentassem no seio pois o “peito cai” após o período de amamentação. Eu só ficava repetindo o que aprendi na Faculdade da importância do leite materno para os bebês e estava completamente despreparado para aquela discussão do mundo real. Aí umas mulheres mais velhas começaram o colocar seus seios para fora de suas blusas para mostrar as outras que amamentação não causava lascidão dos seios. De repente estavam todas com os peitos para fora descobrindo que o “peito caia” para algumas, amamentando ou não no seio, e não caia para outras, amamentando ou não no seio. Aprendi muito com elas neste dia.

Um efeito colateral da Comissão de Investigação de Óbitos Infantis é que fizemos uma descoberta importante no campo da epidemiologia materno-infantil, sem ter consciência dela. Ao comparar nossos dados com dados esperados de causas de mortalidade infantil, chamava a atenção o fato de termos raros casos de morte infantil súbita e termos um número razoável de óbitos por pneumonia aspirativa (causa incomum). O que tínhamos de especial é que fazíamos autópsia de todos os casos de mortes súbitas, e pela autópsia identificamos que a grande maioria destes casos era devido a aspiração do leite materno pelo bebê. Passamos a orientar todas as mães a dar uns tapinhas nas costas do bebê após a amamentação e só deitá-los depois que eles arrotassem. Nunca publicamos estes achados e esta orientação. Comentei este fato com um grande epidemiologista brasileiro que trabalhava com epidemiologia materno-infantil junto com um pessoal na Inglaterra. César Victora ficou impressionado com o achado, principalmente por que todas as pesquisas, sem elucidação do nexo causal, de morte súbita naquela época eram relacionadas a poluição em ambientes fechados. Não sei se o Cessar é parte ou não desta cadeia de enventos, mas um ano depois os ingleses publicam que morte súbita infantil é causada por aspiração de leite materno e este evento passa a ser denominado de “doença do berço” em todo o mundo.

Um outro efeito colateral da Comissão de Investigação e Análise de Óbitos Infantis foi o programa de Defesa da Vida do Lactente, que era um programa com base em análise de risco no momento do nascimento e uma intervenção especial às crianças identificadas como de alto risco. David Capistrano e eu fizemos um sistema de pontuação com 11 variáveis clínicas e sócio-ecnômicas identificadas no estudo de coorte de crianças realizado por César Victora e Fernando Barros em Pelotas. Eu fiz um acompanhamento de todas as crianças nascidas no prazo de um ano e meio para validar e aprimorar este sistema de pontuação. O resultado final foi apresentado na minha tese de doutorado e este trabalho serviu de referência a muitos outros programs de saúde com base em análise de risco.

Fui Professor de Epidemiologia na Faculade de Saúde Pública da Univerdade de São Paulo entre 1983 e 1992. Encontrei um Departamento dividido entre dois professores titulares. Os cargos de novos professores eram preenchidos por cotas que cada um deles tinha. Havia alguns professores não tão poderosos que também tinham suas cotas, mas não faziam parte da disputa do poder do Departamento. Foi na cota de um professor não tão poderoso, Edmundo Juarez, que me tornei professor. Encontrei, também, um Departamento dividido em tipos de doenças. Em 1983, a auto-denominada epidemiologia moderna ainda não havia chegado lá. Apostei na introdução da epidemiologia moderna, o que acabou acontecendo, e em uma nova relação entre os professores do tipo “cooperativismo”. Esta nova relação não aconteceu e acabou predominando a antropofagia universitária, um espetáculo contínuo de vaidades querendo destruir umas às outras. Sempre quiz estar longe deste tipo de ambiente. Confiei em um “líder” que deixei administrando uma verba de pesquisa que havia recebido da Fundação Kellog, quando fui para o Canadá em 1989 fazer um pós-doutorado. Quando voltei em 1991 a verba havia sido desviada para outros fins sem meu conhecimento e eu nunca pude utilizá-la. A Universidade me ofereceu um espaço para fazer muitas coisas que relatei aqui nesta história, mas a larguei quando optei por morar no Canada.

Já no Canadá entre 1993 a 2000, consegui trabalhar com a ampliação da consciência sanitária. Fazia um relatório anual sobre indicadores de determinantes de saúde e alguns deles alimentava a imprensa local. Quando não tinham matéria, um dos editores do jornal local ligava para mim e pedia um indicador e nomes para iniciar uma discussão. Procurava trabalhar com indicadores na forma de porcentagens pois a interpretação de porcentagens é instintiva para o público. Um dos casos foi com o indicador “parenting”. As enfermeiras de saúde pública entre suas atividades, reviam algumas habilidades das mães nos cuidados de suas crianças. Estas habilidades eram revistas no momento que as mães levavam suas crianças para vacinação. Como podemos medir a qualidade de atenção materna e paterna em um número? Descobrimos um “proxi”, uma medida que resumisse o que a atividade queria atingir mesmo de forma indireta: tempo que o pai e a mãe gastam conversando (em caso de adolescentes) ou brincando (em caso de crianças) com seus filhos. Em uma reunião arbitramos que o tempo mínimo deveria ser de 15 minutos por dia. O resultado foi uma grande diferença entre mães e pais, o que causou uma importante discussão sobre o papel dos pais na formação das crianças. Alguns pais reclamaram: “eu trabalho o dia inteiro e chego cansado em casa. Não dá para brincar ou conversar com os filhos. Isto é função da esposa”. O entendimento de que pai e mãe tem funções diferentes na formação dos filhos foi um importante sub-produto destas discussões.

Em 2001, já de volta no Brasil, fui para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Anvisa. Era uma instituição nova, com um bom comando. Tive uma oportunidade incrível de organizar um serviço e atualizar a regulamentação sanitária na área de medicamentos de acordo com o estado da arte do assunto. Gonzalo Vecina Neto, o primeiro Diretor-Presidente da Anvisa queria sair do “cartório para o laboratório”. Ao montar a Agência criou duas unidades novas: uma para habilitar uma rede de laboratórios, para dar conta das novas exigências que viriam, e uma de vigilância pós-comercialização, para monitorar a qualidade dos produtos no mercado. Para a vigilância pós-comercialização ele queria um epidemiologista e eu fui o convidado. O convite foi feito quando estava em recuperação pós a cirurgia de doação do fígado. Gonzalo foi me entregando cada vez mais novos desafios. Depois de estruturar a rede de Hospitais Sentinelas como instrumento principal para a realização da vigilância de produtos pós-comercialização (projeto premiado em 2007 pela Escola Nacional de Administração Pública), comecei a trabalhar com o Projeto Bulas, que visava o controle da acurácia da informação prestada pela indústria, sua atualização eletrônica e ampliar o acesso através de uma linguagem mais simples e busca pela internet. A seguir fui incumbido de re-escrever o regulamento técnico de registro de medicaments que culminou com 19 diferentes regulamentos depois de dois anos de consultas públicas envolvendo centenas de indústrias, serviços e instituições acadêmicas. Por fim tive a oportunidade de gerenciar a área de registro de medicamentos.

Gostaria de compartilhar a visão que adquiri de vigilância sanitária. As ações de vigilância sanitária compreendem: 1) regulamentação e fiscalização da qualidade de produtos utilizados na assistência a saúde, 2) regulamentação e fiscalização da qualidade de serviços direcionadas à assistência a saúde, 3) regulamentação e fiscalização da qualidade dos alimentos para evitar doenças infecciosas e intoxicações químicas, 4) regulamentação e fiscalização da qualidade da água para evitar doenças infecciosas, 5) regulamentação e fiscalização da disposição de efluentes e lixo para evitar doenças infecciosas, 6) promoção da saúde no tocante a poluição de solo e ar que afetam a saúde da comunidade, 7) promoção da saúde no tocante a possíveis riscos no ambiente do trabalho que afetam a saúde do trabalhador, 8) proteção à comunidade quanto ao trânsito de viajantes e entrada de produtos que possam afetar a saúde de membros da comunidade, 9) defesa do consumidor quanto a informações que venham a ser veiculadas na promoção comercial de produtos utilizados na assistência a saúde, 10) defesa do consumidor quanto ao abuso de preços e a monopolização do mercado utilizados na assistência a saúde.

Como seriam as definições de metas para conceitos como regulamentação, fiscalização, promoção, proteção e defesa? Como definir metas quando a unidade de ação da vigilância sanitária não são indivíduos e sim agregados de indivíduos, ou seja, comunidades ou espaços?

O campo da saúde está habituado a metas relacionadas à redução de morbidade ou mortalidade. De uma forma simplista podemos afirmar que a meta da vigilância sanitária é ”zero casos” de doença ou morte causada por falta de qualidade, por falta de redução de risco ambiental e do ambiente de trabalho, por falta de fiscalização no trânsito de pessoas e objetos que possam vir a provocar doenças, por falta de acesso a produtos de saúde ou por propaganda enganosa.

No caso de doenças infecciosas preveníveis por ações de saneamento ou vacinação o nexo causal é imediato e é possível falar em redução de uma morbidade específica. Mesmo nestes casos, uma redução de mortalidade já é multicausal e não pode ser diretamente atribuída às ações de vacinação ou saneamento.

Em todas as demais circunstâncias, onde a rede de multicausalidade não tem uma forte preponderância de um único fator é difícil atribuir uma meta em termos de redução de morbidade ou mortalidade. São raras as circunstâncias em vigilância sanitária onde a relação causa-efeito é imediata.

Financiar ou não ações de vigilância sanitária por parte de uma comunidade depende do patamar de qualidade de vida alcançável em determinado momento por esta comunidade. Por exemplo: para quem ainda não tem acesso a serviços de saúde é difícil a mobilização por qualidade destes serviços. Porém, para quem já tem o aceso garantido, qualidade é o próximo passo. Podemos dizer que a tendência é a vigilância sanitária assumir uma importância cada vez maior junto à população conforme ocorra a melhora de oferta de serviços e a ampliação de seu nível educacional.

Quais são as metas da vigilância sanitária? Existir onde ainda não existe, ganhar eficiência, ganhar abrangência, estar conectada com as lideranças das comunidades e difundir suas ações, rumo a utopia do “zero casos” em que suas ações poderiam ter evitado.

Cabe salientar que enquanto a Anvisa está mais absorvida com o controle de qualidade de um produto ou serviço, as vigilâncias sanitárias municipais estão mais absorvidas pela qualidade do meio ambiente, saneamento e comércio dos alimentos. Algumas vigilâncias sanitárias estaduais têm ações específicas de inspeção periódica de alguns serviços de saúde, indústrias produtoras de insumos de saúde, controle de solo, de alimentos e de ambientes de trabalho.

Uma avaliação viável da ação da vigilância sanitária é a coleta sistemática de indicadores de conformidade e de uso adequado a partir de amostras de consumo de produtos ou serviços. Enquanto o indicador de conformidade avalia mais a ação do sistema a nível central, o indicador de uso adequado avalia mais o sistema a nível local.

É discutível se o Estado deve produzir medicamentos, mas ninguém tem dúvida que é o Estado que deve fiscalizar e punir quem mistura farinha no medicamento ou proclama um poder terapêutico que não existe. Uma agência regulatória visa evitar fraudes e manter um padrão mínimo de qualidade no mercado. Se não for pela presença do Estado, os diversos atores econômicos vão procurar tirar vantagem do sistema, diminuindo a qualidade de seus produtos. Ninguém é santo neste jogo. Na área de regulação de medicamentos entramos em choque com a indústria nacional que queria manter a produção de medicamentos sem passar por testes de conformidade do produto. Estavam acostumados com a função cartorial do Ministério da Saúde nesta área, onde se vendia registros de medicamentos com fórmulas antes deles começarem a ser produzidos. Quando eram produzidos a fórmula era outra. Este segmento, agitando a bandeira nacionalista, sempre procurou tirar vantagens do Estado, dando em troca a sociedade produtos de qualidade discutível. Entramos em choque também com as multinacionais que queriam que seus testes de qualidade produzidos nas matrizes servissem a todos os países do mundo. Nós os obrigamos a repetir os testes aqui para permitir a transferência de tecnologia e permitir o monitoramento de qualidade quando o medicamento estivesse em comercialização.

O sucesso deste tipo de política depende dela se tornar política pública e não somente política de governo. A chave para este salto está nas consultas públicas. Elas devem envolver o máximo de atores, o máximo de discussões técnicas. Esta foi minha nova militância na sociedade democrática: participar da criação de políticas públicas. Uma organização não governamental (ONG) começou um programa de construção de cisternas no interior do Nordeste. Este programa foi incorporado pela sociedade local e hoje é uma política pública. Se na época da ditadura, fazer política era subverter o Governo para derrubá-lo, na democracia, fazer política é criar políticas públicas e lutar para criar instituições fortes, com um gerenciamento transparente, justo e eficiente. Acredito muito neste tipo de militância via o local de trabalho.

A base da qualidade de um medicamento são testes laboratoriais e ensaios clínicos. Dependendo do tipo de medicamento ele deve passar por equivalência farmacêutica, bioequivalência, testes toxicológicos, ensaios clínicos fase III e testes de estabilidade. A Anvisa criou uma legislação que exige estes testes, credenciou laboratórios em condições de realizar estes testes, mas o sucesso desta política depende da competência em fiscalizar estes laboratórios credenciados e saber interpretar e questionar o resultados destes testes. Para isto faz-se necessário recursos humanos altamente qualificados. Desde a saída do Gonzalo Vecina da direção da Anvisa, começou a haver um desmonte deste capital intelectual, culminando com a dissolução do grupo técnico responsável pela análise de estudos de bioequivalência, pilar do sucesso da política de genéricos no Brasil. Há muito mais uma preocupação em homogeneizar a mão de obra técnica da Anvisa do que capacitar cada especialista em uma especificidade que no conjunto faria da Anvisa um capital intelectual que o setor regulado não teria condições de conduzir para atender a seus interesses.

Na medida que o mercado de medicamentos vai se qualificando, a questão da qualidade e veracidade das informações repassadas aos pacientes assume cada vez mais importância. O uso racional de medicamentos passa pelo acesso rápido por parte dos prescritores à alternativas terapêuticas para cada indicação de tratamento. O projeto Bulas Anvisa-Bireme tinha esta finalidade e foi interrompido em 2005.

No campo da legislação, não consegui ir até o fim em quatro áreas. 1) Extensão de Comercialização – esta é uma resolução que chegou a ser aprovada pela Diretoria Colegiada depois de várias rodadas de consultas públicas, mas não aprovada pela Procuradoria, por se chocar com a Lei maior de 1976. Um simples decreto lei retirando uma palavra da Lei de 1976 que define o que é registro de medicamentos resolveria esta questão. Esta Resolução racionalizaria muito o trabalho da Anvisa e daria maior transparëncia ao mercado (acredito que haveria numa redução de 1/3 no volume de trabalho nas áreas de registo de similares e genéricos). 2) Medicamentos de Referência –uma simples mudança na Lei de Genéricos permitiria legalizar a flexibilidade que de fato a Anvisa adota na definição de medicamentos de referência (que tem que adotar para viabilizar a política de genéricos). 3) Importação de Matérias Primas – Fizemos uma proposta de só permitiria importação de matérias primas que tivessem sido aprovadas pelas farmacopéias Americanas ou Européias, que é o padrão de qualidade imposto pelos órgãos regulatórios dos EUA e da Europa. Esta proposta não foi aprovada pela Diretoria Colegiada e até hoje temos uma conduta mais restritiva para o produto nacional e mais leniente para com o produto importado. 4) Propriedade Intelectual – A Anvisa tem um grupo com 15 técnicos trabalhando na área de análise de processos de patente de fármacos, sem uma Resolução que dê transparência ao que estão fazendo. Julgo que no momento o trabalho é muito bom e sério, mas, por questão de princípio e por ser um valor da Anvisa, ela não deve trabalhar sem transparëncia. A questão da propriedade intelectual é seríssima do ponto de vista de política industrial de um País e há um potencial de conflito com o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual se continuarmos trabalhando sem uma Resolução. A Anvisa, as universidades de ponta e a indústria nacional que têm condições de desenvolver novos fármacos deveriam trabalhar juntas em uma proposta de Resolução a ser submetida a consulta pública. Quando tive condições de me envolver com esta área, fui impedido de ter qualquer iniciativa nesta direção.

Quando voltei ao Brasil em 2000, resumi a diferença entre Canadá e Brasil em uma única palavra: gerenciamento. Hoje sei por que o gerenciamento de resultados dá certo no Canadá e não no Brasil.

Primeiro porque no Brasil há muitos gerentes para poucos diretores. Onde trabalhei no Canadá, havia sete diretores e uns 100 gerentes, ou seja, cada diretor tinha que supervisionar uns 15 gerentes. Sem ser por resultados é difícil gerenciar. Em 2006, na Anvisa havia uns 60 gerentes supervisionados por uns 20 gerentes-gerais, divididos para 5 diretores. Se cada gerente geral supervisiona três em média, a atividade principal fica sendo o controle dos processos. Não há outra coisa para fazer. Poucos (os melhores) têm uma atividade técnica própria. Eu acho que não é difícil gerenciar por resultados: o primeiro resultado que se pode pactuar com um novo gerente é dar-lhe um tempo para apresentar um plano de trabalho com cronograma e indicadores de resultados.

O segundo segredo é ter a pessoa certa para a respectiva função. Para isto é fundamental a descrição das atribuições de cada função (que tem no Canadá) e um processo de seleção público de gerentes para trazer a uma organização o que há de mais competente no mercado de trabalho. A função do Diretor é dar a palavra final na admissão, demitir, cobrar resultados e tomar decisões a nível estratégico.

As autorizações de atividades de processo nunca são realizadas pelo Diretor no Canadá. Cada gerência é uma unidade orçamentária e tem que se virar com o dinheiro que tem (este é o terceiro segredo). Se gastar tudo em passagem de avião para deslocamento de pessoal, por exemplo, não conseguirá terminar o ano e o gerente perderá o emprego (uma das condições para ser gerente e permanecer gerente é saber controlar o orçamento). Há softwares comerciais que dão conta de acompanhamento orçamentário por mês, para ajudar o gerente a cumprir esta função. O dinheiro orçado é distribuído para cada gerência e pode ser na forma de “vales virtuais” que podem “circular” em uma Instituição Pública como se cada gerência tivesse recebido um montante em dinheiro para ser administrado.

A minha opinião é que a implantação do gerenciamento de resultados tem que ser feita por pressão de fora da Instituição. Não há como isto partir da estrutura burocrática vigente. Observei que muitos gerentes são pessoas que sozinhas não conseguem chegar a resultado algum, seja por incompetência técnica, seja por dificuldade de agregar pessoas em torno de idéias. Por isto vivem de controlar o trabalho dos outros e se apropriar de idéias ou resultados de outros. Para se manter no poder, fazem o jogo de nunca se contrapor aos diretores (ou gerentes gerais), alimentando suas vaidades com ausência de críticas e presença de elogios. Se conseguirem jogar um diretor contra outro para posar de fiel escudeiro de um deles, fica melhor ainda. Os que estão abaixo deles são os oprimidos, que vão se tornando cínicos para sobreviver a este tipo de ambiente de trabalho. O drama é que devido a este tipo de burocracia os mais inteligentes vão se afastando e as instituições que trabalham desta forma vão se tornando medíocres.

Ao comparar o sistema de saúde canadense com o brasileiro, acabei tomando consciência da agenda incompleta do SUS na campo da atenção hospitalar. Antes da criação do SUS tivemos por um curto período o SUDS. O SUDS criou regionais de saúde a partir da cobertura de hospitais terciários. Cada regional tinha uma rede de atenção básica em centros de saúde, integrando a parte curativa com a prevenção. O SUDS previa hospitais gerais estaduais entre a rede básica e o hospital terciário. Esta proposta é similar ao modelo de assistência a saúde público inglês e canadense.

No Brasil, houve uma aliança entre o movimento municipalista e o movimento pela reforma sanitária, que culminou na criação do SUS na Constituinte. O SUS fez do município a base política da organização do sistema de saúde e alguns hospitais federais e estaduais foram municipalizados. Previa-se a criação de consórcios municipais para administrar hospitais mas a cooperação entre diferentes municípios não ocorreu. O que ocorrreu é que cada município tentou criar ou criou seu pequeno hospital, o setor privado acabou criando pequenos hospitais também e hoje temos uma rede de seis mil hospitais não integrada entre hospitais gerais e terciários causando má qualidade no atendimento hospitalar (grande quantidade de mortes evitáveis por iatrogenias) e uso irracional de recursos (baixa eficiência em uma área que drena grande quantidade de recursos). A meu ver, o ideal seria deixar a rede de atenção básica, o Programa de Saúde da Família, e ambulatórios de especialidades para a gestão municípal e a rede hospitalar para a gestão estadual, que tem melhores condições de proporcionar a integração com a rede básica de vários municípios.

As resoluções da Anvisa visam a traçar um padrão mínimo de qualidade de produção e comercialização de insumos e serviços de saúde. A grande ameaça para quem não cumpre este padrão é a da vigilância sanitária interditar estes serviços ou linhas de produção, ou recolher produtos do mercado. No caso de serviços de saúde é muito difícil fechá-los sem ter uma alternativa para manter o acesso. Portanto, resoluções da Anvisa para os serviços públicos de saúde são inócuas se não ajudarmos estes serviços a identificar e controlar riscos sanitários, clínicos e ocupacionais.

O Projeto Hospitais Sentinelas e a aproximação do programa de controle de infecção hospitalar ao gerenciamento de todos os tipos de riscos hospitalares é um caminho promissor. A introdução nos Estados Unidos da campanha “Salvar 100.000 vidas” toda ela com base em gerenciamento de risco aponta novos caminhos de qualificação dos serviços de saúde. Um sistema de vigilância de infecção hospitalar com base em casos e não resultados de laboratórios, separando casos endêmicos de casos epidêmicos, com a preocupação maior de adotar medidas preventivas e não a da utilização de antibióticos, faz parte deste caminho.

Família

Família

Em nossas vidas precisamos contribuir para melhorar a humanidade, melhorar nosso País, melhorar nossa família e nos tornarmos indivíduos melhores. Nem sempre temos oportunidades de atuar em todas estas frentes ao mesmo tempo.

Quando tinha 14 anos, tive uma discussão com uma amiga de Colégio sobre quem era o melhor compositor: Caetano Veloso ou Geraldo Vandré. Eu achava que era Vandré pelo poder de mobilização da letra de suas músicas. Ela achava que era Caetano pela qualidade e inovação de suas músicas. Quando cheguei em casa comecei a chorar sem parar. Meu pai quiz saber o que tinha acontecido. Quando lhe contei que estava muito triste porque minha amiga não concordava comigo pois achava o Caetano melhor que o Vandré, ele me disse: “Davi, você está chorando por que você está apaixonado por esta menina. É só isto”. Parei de chorar. Tinha acabado de descobrir o amor.

Aos 17 anos, ainda no Colégio, me apaixonei de novo e desta vez fui correspondido. Eu a admirava muito. O problema é que ela cresceu mais rápido que eu. Ela quiz casar quando tínhamos 20 anos, idade que ela já trabalhava e se auto-sustentava, mas eu morava na casa dos meus pais que ainda me davam de comer e lavavam minha ropa. Ela acabou casando com outro. Eu fiquei muito deprimido e comecei a fugir de mulheres “admiráveis”, que poderiam me largar a qualquer momento. Estas seriam somente minhas amigas.

Acabei casando cedo mesmo assim. Tinha 24 anos, minha esposa 22. Com 25 anos já era pai. Nesta idade o que eu enxergava do mundo era que minha esposa tinha que ser bonita, uma boa mãe e uma companheira de luta. E Elisia era tudo isto e eu achava que ela não me abandonaria a qualquer momento. Com 32 anos me separei, e depois me casei de novo com a mesma companheira aos 34. Foi um período no qual consegui me aproximar mais dos meus filhos, mas não consegui mudar meu padrão de relacionamento com as mulheres. Se não me reconciliasse com Elisia, ia acabar casando com outra mulher para repetir o mesmo relacionamento de tipo egoísta-generoso.

Porém, com o passar dos anos, nossas diferenças se acentuaram, nossas solidões dentro do casamento aumentaram e na fase de adolescência de nossos filhos passamos a não trabalhar unidos para educá-los, apoiá-los e reprimi-los. Após 20 anos, e com 44 anos de idade, nosso casamento acabou.

Resolvi voltar para a procura da mulher “admirável”. A primeira que encontrei após minha volta ao Brasil em 2000 eu me apaixonei. Era minha chefe. Propus a ela um casamento no qual eu ficaria em casa para cuidar de filhos enquanto ela segueria sua carreira profissional. Ela me respondeu: “quem disse que eu quero um homem como este?” Mas ela me deu uma chance. Por ocasião da doação de meu fígado ao David ela resolveu me apoiar com afeto. Logo após a cirurgia, quem ia me visitar me encontrava com a barriga toda cortada (aproximadamente 40 pontos) e um sorriso nos lábios. Dizia a todos: “perdi meio fígado mas ganhei um coração.” Quando comecei a melhorar, este relacionamento acabou. Fiquei muito triste e de novo prometi para mim não mais se envolver com mulheres “admiráveis”.

Quando fui para a Anvisa, trabalhei em uma sala cuja porta dava para um corredor. No fim do corredor havia uma outra porta e uma morena gracinha trabalhando lá dentro. Livia estava disponível, era amorosa, era uma companheira de luta e eu não achava que ela me largasse de repente. Vivemos juntos por 4 anos. Eu a tratava bem com a esperança que ela dessitisse de querer ter filhos. Ela me tratava bem com a esperança de que um dia eu aceitasse ter filhos com ela. Com o tempo ela cansou de investir e esperar. Perdi a convivência com uma pessoa alegre que acordava dizendo “Bom dia luz do dia!”

Solteiro de novo, uma amiga “admirável” me conta que uma pessoa “admirável” da Anvisa tinha acabado de se separar. No dia seguinte encontrei esta pessoa no elevador. Só eu e ela e três andares para dizer algo. Olhei para ela e disse: “acho que temos algo em comum”. Adélia sabia que eu estava separado e ficou curiosa para saber o quanto eu sabia da situação dela, que ela procurava manter com discrição. Começamos a conversar e não paramos até hoje.

Redescobri a família e resolvi investir nela. Em 2006, eu e Adélia resolvemos voltar para o Canadá onde moram meus filhos. Vou tentar encontrar um jeito de sobreviver por aqui. Pela primeira vez estou tendo a oportunidade de ter um relacionamento entre iguais com minha parceira “admirável”, que está afim de se envolver com meus filhos. Estou tentanto ser uma pessoa melhor, menos egoísta. Espero, através de meu exemplo, ajudar meus filhos a terem sucesso na construção de suas futuras famílias. Acho que para um relacionamento a longo prazo e compartilhado, admiração mútua é fundamental. A relação entre desiguais (um generoso e outro egoísta), pode dar menos trabalho, mas leva a duas solidões.

Um assunto ainda não resolvido com meus filhos é a questão da religião. Sou um judeu não-judeu, ou seja de etnia e cultura judaica, mas que fêz a opção de sair da tribo e se misturar na Humanidade. A mãe de meus filhos é católica. Se Deus criou o Homem ou se o Homem criou Deus, para mim Deus existe seja qual for a opção do início da frase. Religião quem criou foi o Homem não foi Deus. Se Deus tivesse criado a religião não teria ocorrido guerras em nome das religiões. A religião que se julga melhor que as outras só serve para dividir a Humanidade. Com estes princípios, qualquer religião é válida, pois Deus é único e a moral em todas as religiões monoteístas são muito parecidas. Mas não seguir nenhuma religião é válido também, desde que se siga a moral comum a todas as religiões: respeito pelo próximo, amor a família, humildade e serenidade. Como há muita hipocrisia entre pessoas que praticam ritos religiosos e sociais (não praticam o que falam), achei que minha conduta moral e minha transparência seriam suficientes para suprir a necessidade de religião de meus filhos.

Mas eles não vivem isolados das pessoas e ser de uma religião assim como de um grupo étnico facilita a vida em comunidade que é tão importante quanto a família para a formação dos jovens.

Propus à Elisia que optássemos por uma terceira religião e descobri o Bahai. Descobri três princípios da religião Bahai que adoto até hoje como meus:1) Há uma diferença entre “paz maior” e “paz menor”. A “paz maior” é a luta por movimentos que unificam a humanidade: feminismo, ecologia, sanitarismo, paz, etc.. A “paz menor” é a luta pelo poder político que divide a humanidade pois a vitória de um passa pela negação das virtudes do outro. Um tem que destruir o outro para chegar e se manter no poder. No Bahai, seus adeptos só devem participar da “paz maior”. 2) Toda religião é histórica: Deus, através da voz ou escritos dos Profetas, procura elevar a humanidade que vive em um determinado espaço e tempo a um novo estágio de civilização. Alcançado este estágio, novos Profetas surgirão com novas mensagens para os novos tempos. 3) Há très estágios na vida: o primeiro é na barriga da mãe quando estamos nos preparando fisicamente para a etapa seguinte. Na barriga da mãe não temos idéia do que seja a etapa seguinte. O segundo estágio é o que estamos vivendo e visa a nos preparar espiritualmente para a etapa seguinte. Assim como na barrriga da mãe não sabemos o que nos espera depois da morte, não cabe especulações a respeito, mas se desenvolvermos nossas virtudes nesta etapa, melhor estaremos preparados para o estágio seguinte.

Estes princípios religiosos me dão tranquilidade e direcionamento. Mas não foram suficientes nem para a Elisia e nem para meus filhos. A Elisia acabou assumindo a “brasilianidade”, que como diz um gaúcho: “aqui no exterior até nós gaúchos nos sentimos brasileiros”. Meus filhos estão prontos para praticar a religião daqueles com quem irão casar. Fazem isto para poder oferecer a seus futuros filhos uma comunidade de referência que dizem ter faltado em suas vidas. Talvez o fato deles terem sido jovens em um ambiente menos cosmopolita do que São Paulo, tenha diminuido suas possibilidades de identificação com alguma tribo que não fosse religiosa.

Eu continuo assumindo o não olhar pelo retrovisor da História. O futuro é de um mundo global inter-racial, e as comunidades serão os nossos vizinhos ou nossos amigos de infância e adolescência. Vamos tomar um café da manhã francês, almoçar uma comida japonesa, jantar uma comida italiana, ao som de uma música brasileira, morando no Canadá. No outro dia estaremos sobre a influência de outras culturas e da criatividade advinda da mistura delas. Para mim, os alemães são o povo que mais contribue com organizações não governamentais e não o povo que um dia participou da aniquilação de meu povo. Se continuarmos olhando pelo retrovisor da História não chegaremos a paz.

Aos 52 anos, meu conceito de felicidade é: no início da manhã, ter vontade de ir ao trabalho. No fim da tarde, ter vontade de ir para casa. Quando não tenho mais vontade de ir ao trabalho, é hora de procurar um novo trabalho. Quando não tenho mais vontade de ir para casa, é hora de procurar uma nova companheira.

Espero que o testemunho e as idéias esboçadas no texto acima possam ser úteis aos que continuam a boa luta. Um abraço para quem fica...

Davi Rumel

Edmonton, março de 2007