A Estratégia da Saúde da Família (ESF) do
Brasil, anteriormente denominado de Programa Saúde da Família, foi considerada
pelo editorial do British Medical Journal
de novembro de 2010 um exemplo a ser seguida por todos os países como modelo de
atenção primária a saúde. A significância deste comentário é que a revista é de
alto prestígio e a Inglaterra é tradicionalmente um ponto e referência para
atenção básica no mundo. No Município de São Paulo, segundo dados do Ministério
da Saúde, 35% da população tem cobertura pela ESF. A ESF é uma das portas de entrada do Sistema Único
de Saúde (SUS).
A ESF é composta de seis pilares: a Medicina de
Família, o Agente Comunitário de Saúde, o Núcleo de Apoio a Saúde da Família
(NASF), a equipe de Saúde Bucal (ESB), o Conselho Gestor e o território de
abrangência. A Medicina de Família é uma especialidade clínica que envolve
ações de médicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem. É uma especialidade
mais complexa que as demais especialidades clínicas, pois o campo de
conhecimento é maior do que qualquer outra especialidade clínica já que envolve
pessoas e não doenças, pessoas que tem várias doenças crônicas ao mesmo tempo.
Disto isto não há Medico de Família ou Enfermeira de Família em nenhum lugar do
mundo completamente formado. Sempre será um processo em formação (daí a
importância destes profissionais estarem envolvidos em educação continuada como
parte de seu horário de trabalho). O importante é incorporar novos instrumentos
como o desenho da constelação familiar ou genograma. Estes instrumentos permitem
entender a pessoa doente dentro de seu contexto familiar tanto para identificar
pontos de agravamento como pontos de resiliência. Outro instrumento é a demora
permitida, a possibilidade de realizar o diagnóstico através de várias
observações para averiguar o progresso da doença via retornos em curto espaço
de tempo ou visitas domiciliares. Daí a importância da Medicina de Família ser
exercida perto da casa das pessoas, com possibilidade de acesso a pé por parte
dos usuários à unidade de saúde e acesso a pé por parte dos profissionais de
saúde à casa dos usuários. O conhecimento do contexto familiar, da demora
permitida, aliada a uma recuperação da boa anamnese (história da doença) e
exame físico fazem da Medicina de Família, além de uma medicina de qualidade
para o usuário, uma medicina sustentável economicamente em contraponto a
medicina com base no uso abusivo de tecnologia diagnóstica que acaba
confundindo achados de variabilidade biológica (achados casuais) com achados
que deveriam ser causais.
O outro pilar são os Agentes Comunitários de
Saúde (ACS). Cada equipe de um
médico, um enfermeiro e dois auxiliares de enfermagem trabalham com 800 a 1000
famílias cadastradas no programa que moram em uma área contínua. Esta área é dividida em seis micro-áreas cada
uma com 140 a 180 famílias. Cada micro-área tem um agente comunitário que mora
na área de abrangência da unidade de saúde (o território da unidade). O agente
comunitário deve promover a saúde no território de abrangência da equipe. Seus
instrumentos de trabalho são as visitas domiciliares, as inspeções domiciliares
em busca de criadores de vetores, grupos de teatro para ações educativas e
auxiliares na coordenação do cuidado do paciente junto à família. As atividades
de educação coletiva são fundamentais para a prevenção das epidemias como a
dengue, a AIDS, o H1N1, a conjuntivite e a obesidade, cuja prevenção envolve
mudanças de hábitos na população. Para os acamados as visitas de rotinas dos
ACSs trazem o processo de gerenciamento do cuidado de seus tratamentos para
dentro de suas casas.
Estes agentes não estão prontos quando entram no
programa. O processo de educação continuada e educação permanente em serviço
são fundamentais. Para muitos é o primeiro emprego e eles crescem e saem em
busca de melhor oportunidade de trabalho. Esta preparação de mão de obra ao
mercado de trabalho é uma das funções sociais da ESF. Por sua vez, outros não
conseguem mais sobreviver no mercado de trabalho ou nunca conseguiram entrar.
Para estes, a existência de um emprego próximo de suas casas, compatível com
suas rotinas familiares, são uma solução para a recuperação ou incremento de
suas dignidades.
O Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF) é
um dos conceitos mais avançados da ESF e um dos últimos componentes que foram
agregados a esta estratégia. Pela orientação atual do Departamento de Atenção
Básica do Ministério da Saúde cada 9 equipes de Saúde da Família deve ter um
NASF. Na nossa região, cada NASF tem 10 profissionais de saúde distribuídos em
três áreas de conhecimento: área reabilitação: um fisioterapeuta, um
fonoaudiólogo e um terapeuta ocupacional; área promoção da saúde: um assistente
social, um psicólogo, um nutricionista e um educador físico; área clínica: um
ginecologista, um pediatra e um psiquiatra. O território de um NASF pode ser
igual ao da unidade básica de saúde (para unidades com 9 ou mais equipes) ou
maior para unidades menores. Por exemplo, um conjunto de unidades de saúde com
3 equipes cada por exemplo, terão um NASF para estas três unidades. O NASF não
é um ambulatório de referência para os profissionais de saúde das equipes. É uma
equipe que visa a compartilhar conhecimentos para um projeto terapêutico de um
doente que envolve a presença de vários profissionais para seu maior êxito. A
operacionalização deste conceito é a seguinte: cada equipe tem uma reunião
semanal ou diária para fazer a gestão do cuidado de seus doentes. Nestas
reuniões se definem aqueles que 1) precisam de visitas domiciliares de cada
profissional da equipe; 2) aqueles que precisam de consultas compartilhadas
entre membros da equipe e profissional do NASF, ou 3) aqueles que precisam
avaliações individualizadas por profissionais do NASF que a seguir encaminham
os pacientes para seguimento pela equipe com sua avaliação devidamente anotada
em prontuário. Para casos mais graves os profissionais do NASF fazem um acompanhamento
por maior período de tempo do paciente antes de retorná-lo a equipe. Para ser
viável esta integração entre diferentes profissionais e a atuação destes
especialistas perto da casa dos usuários, é importante que haja espaço físico
nas unidades para os profissionais do NASF trabalharem e espaço nas agendas
para que profissionais do NASF possam participar de reuniões das equipes para a
elaboração do projeto terapêutico de um determinado doente.
Outra atuação do NASF é sua participação na
promoção da saúde no território. Cada unidade de saúde tem um conjunto de ações
coletivas no território visando à promoção da saúde. A presença destes profissionais nestas ações ajuda a
qualificá-las. Exemplos destas ações: caminhadas com a presença dos professores
de educação física, cozinhas comunitárias com a presença do nutricionista,
grupos de saúde mental com a presença do psicólogo, grupos de dor com a
presença do fisioterapeuta, ações com as crianças e adolescentes fora e dentro
das escolas envolvendo vários profissionais, entre outros.
No aspecto clínico, as consultas compartilhadas
entre médicos de família e os especialistas permite um crescimento técnico cada
vez maior o que aumentará a resolutividade destes profissionais (a capacidade
resolverem um caso sozinho). Teoricamente para profissionais que estiverem com
bom domínio de casos de atenção básica nas áreas de psiquiatria, pediatria e
ginecologia (ou que fizeram residência em Medicina de Família), nada impede que
outras especialidades estejam disponíveis para consultas compartilhadas com os
médicos de família. Sabemos de experiência semelhante envolvendo médicos de
família com dermatologistas e cardiologistas em outros países.
Mais um pilar importante da ESF: a equipe de
saúde bucal. Há duas modalidades de equipes de saúde bucal: uma com dentista e
auxiliar, outra com dentista, auxiliar e higienista (técnico). Nossa
experiência é a de que deve haver um máximo de três equipes de saúde da família
para cada equipe de saúde bucal e que cada unidade com duas ou mais equipes de
saúde bucal deve ter no mínimo uma delas completa com a higienista. A demanda
por uma dentição saudável é grande. Ninguém quer perder sua dentição afetando
seu sorriso, sua auto-estima e sua capacidade mastigatória, além do fato da
necessidade de eliminar a forte dor por ocasião de infecções dentais não
tratadas. Enquanto o tratamento clínico dificilmente é definitivo, o tratamento
dental é algo mais palpável e duradouro. Tratar dos dentes amplia o vínculo
entre usuários e unidades de saúde que tem implicações em todas as demais
atividades de saúde. Há também o potencial da ESB participar de atividades de
promoção da saúde da unidade. Por exemplo, quando vão às escolas, integrar ações
de educação para a escovação com a lavagem de mãos para prevenir infecções
respiratórias. Nos consultórios, integrar o tratamento de cáries dentais com a prevenção
da obesidade.
A ESF tem um importante papel na construção da
Democracia também. Os Conselhos Gestores de cada unidade são compostos de 50%
de usuários eleitos entre seus pares, 25% de representantes dos trabalhadores
eleitos entre seus pares e 25% representantes dos gestores da unidade. Os
Conselhos Gestores têm o potencial de ter uma visão de futuro da saúde e
qualidade de vida do território, trazem casos onde ocorreram falhas no processo
de atendimento que ajudam a corrigir as ações de serviço e ajudam a envolver a
comunidade em ações de promoção da saúde. Aos gerentes de unidades cabem organizar
as reuniões destes Conselhos para ampliar a participação para donas de casa,
estudantes e aposentados que vivem no território da unidade.
Por fim o pilar do território de abrangência.
Território é o espaço onde todas as equipes de saúde da família e de saúde bucal
estão constituídas sob um único comando gerencial e uma estrutura física de
referência. O território não é composto somente de pessoas, mas também de
espaços que devem ser mantidos saudáveis. O Programa de Ambientes Verdes
Saudáveis em São Paulo criou a figura do agente de proteção ambiental, presente
em cada unidade. Este agente ajuda a somar a questão da promoção da saúde à questão
da qualidade do entorno da moradia das pessoas e acabam envolvendo muitos
agentes comunitários de saúde nestas ações. Outro aspecto do território é a
construção de redes entre todos os atores sociais que visem uma ação de
desenvolvimento social das comunidades que habitam àquele território. A construção
destas redes é uma tarefa importante do gerenciamento da ESF envolvendo as
escolas, CRAS (serviço social), serviços de saúde mental e ONGS que atuam na
região. Gerenciar na ESF não é gerenciar somente uma unidade de saúde, mas
também um território.
Acima destes pilares há o dia a dia das
unidades. Acolhimento de quem é cadastrado ou não, agendamento de acordo com as
normas dos programas de puericultura, pré-natal, controle de hipertensos e
diabéticos dos cadastrados e regulação (a marcação de consultas no sistema de
referência a especialista e exames complementares) são processos de trabalho em
constante qualificação. A questão do espaço físico (em geral inadequado) e sua
manutenção, a garantia do acesso na falta de profissionais para cobrir as vagas
existentes, o monitoramento de suprimentos para que não faltem e as mediações
de conflitos entre funcionários e entre usuários com funcionários também fazem
parte do dia a dia das unidades. Para dar conta destas tarefas a ESF precisa de
gerentes qualificados e uma equipe de apoio para garantir esta qualificação.
Cabe salientar que a maturidade do vínculo de
uma equipe de saúde da família com seu território varia com o tempo e os
profissionais e usuários envolvidos. Nossa experiência indica que no começo, o
médico de família sem conhecer seus usuários chega a encaminhar para exames
especializados ou consultas com médicos especialistas até 25% da demanda de
casos novos. Com o tempo, conhecendo a população de abrangência da unidade,
esta demanda cai para até 12%. As consultas vão deixando de terminar com um
pedido de exame ou uma prescrição para terminar com um “contrato” de mudança de
um hábito não saudável por parte do paciente. Os pacientes poliqueixosos e em
sofrimento mental passam a participar de rodas de terapia comunitária,
facilitadas por auxiliares de enfermagem devidamente treinadas para tal, que
são rituais de escuta e solidariedade. Quando a boca cala o corpo sente – este
é o mote da terapia comunitária. Estes rituais de escuta diminuem a demanda a médicos
e enfermeiros quando o remédio necessário é atenção e carinho. Outro sinal de
amadurecimento é a frequência aos grupos de mães, grávidas, adolescentes, entre
outros, que criam uma verdadeira plataforma para outras ações na comunidade. Temos
a experiência de atrair outras ONGs para a região para atuar com os grupos de
adolescentes, por exemplo. Empresas nos procuram para doações em seus programas
de responsabilidade social ou por ocasião do Natal para somar com as ações já
em curso nos grupos organizados pelas equipes de saúde da família.
Nem todos os usuários são atendidos pelo modelo
da ESF. A nosso ver, em algumas circunstâncias o pronto atendimento é o ideal:
1) trabalhadores jovens que quando precisam do sistema de saúde é para o cuidado
de acidentes ou afecções agudas; 2) necessidade de falta em serviço cuja
manutenção do pagamento depende de um atestado médico. Em épocas de baixo
desemprego o uso deste serviço para atestados médicos é abusivo, contribuindo
para aumentar a demanda; 3) mães ansiosas que não tem conhecimento suficiente
de como se comportar a qualquer anormalidade da criança. Em casos de
necessidade de seguimento de tratamento há um sistema de agendamento eletrônico
da consulta na unidade de saúde mais próxima; 4) exercício da medicina de
urgência para toda a população. O pronto atendimento em São Paulo é uma
estrutura física com concentração de tecnologia, com ambulância para remoção de
pacientes, aberta 12 ou 24 horas por dia e durante os fins de semana, o que
acaba servindo para desafogar os pronto-socorros de hospitais.
Outra porta de entrada ao sistema único de
saúde (SUS) são as unidades básicas que mantêm o modelo tradicional de atenção
básica com possibilidade de agendamento direto com o médico clínico, o ginecologista
e o pediatra por parte do usuário. Nestas unidades não há população cadastrada
por área territorial, não há visitas domiciliares por parte de médicos, não há
agentes comunitários de saúde e não há NASF.
O sistema de referência para a ESF, o modelo
tradicional e o Pronto Atendimento são os Ambulatórios de Especialidade e os
Hospitais. Ampliar a capacidade resolutiva dos ambulatórios de especialidade transformando-os
em hospitais-dia é um passo importante para diminuir o gargalo no acesso a
intervenções de média complexidade. Esta é um dos aspectos da proposta do “Hora
Certa”, capitaneado pela atual administração da Secretaria Municipal de Saúde.
A construção de dois novos hospitais municipais e a reativação de leitos
hospitalares nos já existentes para as intervenções de alta complexidade faz
parte da política de melhoria de acesso à atenção secundária e terciária.
A segunda marca da nova administração será os
Centros de Saúde Integrados. O quanto da Estratégia de Saúde da Família terá
nestes Centros de Saúde Integrados ainda não sabemos. Só podemos esperar que a
ESF, a atenção básica que deu certo para 90 milhões de brasileiros em todos os
rincões deste vasto território e já é uma referência mundial, faça parte deste
modelo de atenção básica.
Davi Rumel
Medico Sanitarista, Dr em Epidemiologia.
Coordenador ESF/Sul.
Associação Saúde da Família.