Wednesday, July 17, 2013

A Atenção Básica Que Deu Certo

A Estratégia da Saúde da Família (ESF) do Brasil, anteriormente denominado de Programa Saúde da Família, foi considerada pelo editorial do British Medical Journal de novembro de 2010 um exemplo a ser seguida por todos os países como modelo de atenção primária a saúde. A significância deste comentário é que a revista é de alto prestígio e a Inglaterra é tradicionalmente um ponto e referência para atenção básica no mundo. No Município de São Paulo, segundo dados do Ministério da Saúde, 35% da população tem cobertura pela ESF.  A ESF é uma das portas de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS).

A ESF é composta de seis pilares: a Medicina de Família, o Agente Comunitário de Saúde, o Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF), a equipe de Saúde Bucal (ESB), o Conselho Gestor e o território de abrangência. A Medicina de Família é uma especialidade clínica que envolve ações de médicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem. É uma especialidade mais complexa que as demais especialidades clínicas, pois o campo de conhecimento é maior do que qualquer outra especialidade clínica já que envolve pessoas e não doenças, pessoas que tem várias doenças crônicas ao mesmo tempo. Disto isto não há Medico de Família ou Enfermeira de Família em nenhum lugar do mundo completamente formado. Sempre será um processo em formação (daí a importância destes profissionais estarem envolvidos em educação continuada como parte de seu horário de trabalho). O importante é incorporar novos instrumentos como o desenho da constelação familiar ou genograma. Estes instrumentos permitem entender a pessoa doente dentro de seu contexto familiar tanto para identificar pontos de agravamento como pontos de resiliência. Outro instrumento é a demora permitida, a possibilidade de realizar o diagnóstico através de várias observações para averiguar o progresso da doença via retornos em curto espaço de tempo ou visitas domiciliares. Daí a importância da Medicina de Família ser exercida perto da casa das pessoas, com possibilidade de acesso a pé por parte dos usuários à unidade de saúde e acesso a pé por parte dos profissionais de saúde à casa dos usuários. O conhecimento do contexto familiar, da demora permitida, aliada a uma recuperação da boa anamnese (história da doença) e exame físico fazem da Medicina de Família, além de uma medicina de qualidade para o usuário, uma medicina sustentável economicamente em contraponto a medicina com base no uso abusivo de tecnologia diagnóstica que acaba confundindo achados de variabilidade biológica (achados casuais) com achados que deveriam ser causais.

O outro pilar são os Agentes Comunitários de Saúde (ACS). Cada equipe de um médico, um enfermeiro e dois auxiliares de enfermagem trabalham com 800 a 1000 famílias cadastradas no programa que moram em uma área contínua. Esta área é dividida em seis micro-áreas cada uma com 140 a 180 famílias. Cada micro-área tem um agente comunitário que mora na área de abrangência da unidade de saúde (o território da unidade). O agente comunitário deve promover a saúde no território de abrangência da equipe. Seus instrumentos de trabalho são as visitas domiciliares, as inspeções domiciliares em busca de criadores de vetores, grupos de teatro para ações educativas e auxiliares na coordenação do cuidado do paciente junto à família. As atividades de educação coletiva são fundamentais para a prevenção das epidemias como a dengue, a AIDS, o H1N1, a conjuntivite e a obesidade, cuja prevenção envolve mudanças de hábitos na população. Para os acamados as visitas de rotinas dos ACSs trazem o processo de gerenciamento do cuidado de seus tratamentos para dentro de suas casas.        

Estes agentes não estão prontos quando entram no programa. O processo de educação continuada e educação permanente em serviço são fundamentais. Para muitos é o primeiro emprego e eles crescem e saem em busca de melhor oportunidade de trabalho. Esta preparação de mão de obra ao mercado de trabalho é uma das funções sociais da ESF. Por sua vez, outros não conseguem mais sobreviver no mercado de trabalho ou nunca conseguiram entrar. Para estes, a existência de um emprego próximo de suas casas, compatível com suas rotinas familiares, são uma solução para a recuperação ou incremento de suas dignidades.

O Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF) é um dos conceitos mais avançados da ESF e um dos últimos componentes que foram agregados a esta estratégia. Pela orientação atual do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde cada 9 equipes de Saúde da Família deve ter um NASF. Na nossa região, cada NASF tem 10 profissionais de saúde distribuídos em três áreas de conhecimento: área reabilitação: um fisioterapeuta, um fonoaudiólogo e um terapeuta ocupacional; área promoção da saúde: um assistente social, um psicólogo, um nutricionista e um educador físico; área clínica: um ginecologista, um pediatra e um psiquiatra. O território de um NASF pode ser igual ao da unidade básica de saúde (para unidades com 9 ou mais equipes) ou maior para unidades menores. Por exemplo, um conjunto de unidades de saúde com 3 equipes cada por exemplo, terão um NASF para estas três unidades. O NASF não é um ambulatório de referência para os profissionais de saúde das equipes. É uma equipe que visa a compartilhar conhecimentos para um projeto terapêutico de um doente que envolve a presença de vários profissionais para seu maior êxito. A operacionalização deste conceito é a seguinte: cada equipe tem uma reunião semanal ou diária para fazer a gestão do cuidado de seus doentes. Nestas reuniões se definem aqueles que 1) precisam de visitas domiciliares de cada profissional da equipe; 2) aqueles que precisam de consultas compartilhadas entre membros da equipe e profissional do NASF, ou 3) aqueles que precisam avaliações individualizadas por profissionais do NASF que a seguir encaminham os pacientes para seguimento pela equipe com sua avaliação devidamente anotada em prontuário. Para casos mais graves os profissionais do NASF fazem um acompanhamento por maior período de tempo do paciente antes de retorná-lo a equipe. Para ser viável esta integração entre diferentes profissionais e a atuação destes especialistas perto da casa dos usuários, é importante que haja espaço físico nas unidades para os profissionais do NASF trabalharem e espaço nas agendas para que profissionais do NASF possam participar de reuniões das equipes para a elaboração do projeto terapêutico de um determinado doente.

Outra atuação do NASF é sua participação na promoção da saúde no território. Cada unidade de saúde tem um conjunto de ações coletivas no território visando à promoção da saúde. A presença destes profissionais nestas ações ajuda a qualificá-las. Exemplos destas ações: caminhadas com a presença dos professores de educação física, cozinhas comunitárias com a presença do nutricionista, grupos de saúde mental com a presença do psicólogo, grupos de dor com a presença do fisioterapeuta, ações com as crianças e adolescentes fora e dentro das escolas envolvendo vários profissionais, entre outros.      

No aspecto clínico, as consultas compartilhadas entre médicos de família e os especialistas permite um crescimento técnico cada vez maior o que aumentará a resolutividade destes profissionais (a capacidade resolverem um caso sozinho). Teoricamente para profissionais que estiverem com bom domínio de casos de atenção básica nas áreas de psiquiatria, pediatria e ginecologia (ou que fizeram residência em Medicina de Família), nada impede que outras especialidades estejam disponíveis para consultas compartilhadas com os médicos de família. Sabemos de experiência semelhante envolvendo médicos de família com dermatologistas e cardiologistas em outros países.        

Mais um pilar importante da ESF: a equipe de saúde bucal. Há duas modalidades de equipes de saúde bucal: uma com dentista e auxiliar, outra com dentista, auxiliar e higienista (técnico). Nossa experiência é a de que deve haver um máximo de três equipes de saúde da família para cada equipe de saúde bucal e que cada unidade com duas ou mais equipes de saúde bucal deve ter no mínimo uma delas completa com a higienista. A demanda por uma dentição saudável é grande. Ninguém quer perder sua dentição afetando seu sorriso, sua auto-estima e sua capacidade mastigatória, além do fato da necessidade de eliminar a forte dor por ocasião de infecções dentais não tratadas. Enquanto o tratamento clínico dificilmente é definitivo, o tratamento dental é algo mais palpável e duradouro. Tratar dos dentes amplia o vínculo entre usuários e unidades de saúde que tem implicações em todas as demais atividades de saúde. Há também o potencial da ESB participar de atividades de promoção da saúde da unidade. Por exemplo, quando vão às escolas, integrar ações de educação para a escovação com a lavagem de mãos para prevenir infecções respiratórias. Nos consultórios, integrar o tratamento de cáries dentais com a prevenção da obesidade.

A ESF tem um importante papel na construção da Democracia também. Os Conselhos Gestores de cada unidade são compostos de 50% de usuários eleitos entre seus pares, 25% de representantes dos trabalhadores eleitos entre seus pares e 25% representantes dos gestores da unidade. Os Conselhos Gestores têm o potencial de ter uma visão de futuro da saúde e qualidade de vida do território, trazem casos onde ocorreram falhas no processo de atendimento que ajudam a corrigir as ações de serviço e ajudam a envolver a comunidade em ações de promoção da saúde. Aos gerentes de unidades cabem organizar as reuniões destes Conselhos para ampliar a participação para donas de casa, estudantes e aposentados que vivem no território da unidade.       

Por fim o pilar do território de abrangência. Território é o espaço onde todas as equipes de saúde da família e de saúde bucal estão constituídas sob um único comando gerencial e uma estrutura física de referência. O território não é composto somente de pessoas, mas também de espaços que devem ser mantidos saudáveis. O Programa de Ambientes Verdes Saudáveis em São Paulo criou a figura do agente de proteção ambiental, presente em cada unidade. Este agente ajuda a somar a questão da promoção da saúde à questão da qualidade do entorno da moradia das pessoas e acabam envolvendo muitos agentes comunitários de saúde nestas ações. Outro aspecto do território é a construção de redes entre todos os atores sociais que visem uma ação de desenvolvimento social das comunidades que habitam àquele território. A construção destas redes é uma tarefa importante do gerenciamento da ESF envolvendo as escolas, CRAS (serviço social), serviços de saúde mental e ONGS que atuam na região. Gerenciar na ESF não é gerenciar somente uma unidade de saúde, mas também um território.

Acima destes pilares há o dia a dia das unidades. Acolhimento de quem é cadastrado ou não, agendamento de acordo com as normas dos programas de puericultura, pré-natal, controle de hipertensos e diabéticos dos cadastrados e regulação (a marcação de consultas no sistema de referência a especialista e exames complementares) são processos de trabalho em constante qualificação. A questão do espaço físico (em geral inadequado) e sua manutenção, a garantia do acesso na falta de profissionais para cobrir as vagas existentes, o monitoramento de suprimentos para que não faltem e as mediações de conflitos entre funcionários e entre usuários com funcionários também fazem parte do dia a dia das unidades. Para dar conta destas tarefas a ESF precisa de gerentes qualificados e uma equipe de apoio para garantir esta qualificação.

Cabe salientar que a maturidade do vínculo de uma equipe de saúde da família com seu território varia com o tempo e os profissionais e usuários envolvidos. Nossa experiência indica que no começo, o médico de família sem conhecer seus usuários chega a encaminhar para exames especializados ou consultas com médicos especialistas até 25% da demanda de casos novos. Com o tempo, conhecendo a população de abrangência da unidade, esta demanda cai para até 12%. As consultas vão deixando de terminar com um pedido de exame ou uma prescrição para terminar com um “contrato” de mudança de um hábito não saudável por parte do paciente. Os pacientes poliqueixosos e em sofrimento mental passam a participar de rodas de terapia comunitária, facilitadas por auxiliares de enfermagem devidamente treinadas para tal, que são rituais de escuta e solidariedade. Quando a boca cala o corpo sente – este é o mote da terapia comunitária. Estes rituais de escuta diminuem a demanda a médicos e enfermeiros quando o remédio necessário é atenção e carinho. Outro sinal de amadurecimento é a frequência aos grupos de mães, grávidas, adolescentes, entre outros, que criam uma verdadeira plataforma para outras ações na comunidade. Temos a experiência de atrair outras ONGs para a região para atuar com os grupos de adolescentes, por exemplo. Empresas nos procuram para doações em seus programas de responsabilidade social ou por ocasião do Natal para somar com as ações já em curso nos grupos organizados pelas equipes de saúde da família.

Nem todos os usuários são atendidos pelo modelo da ESF. A nosso ver, em algumas circunstâncias o pronto atendimento é o ideal: 1) trabalhadores jovens que quando precisam do sistema de saúde é para o cuidado de acidentes ou afecções agudas; 2) necessidade de falta em serviço cuja manutenção do pagamento depende de um atestado médico. Em épocas de baixo desemprego o uso deste serviço para atestados médicos é abusivo, contribuindo para aumentar a demanda; 3) mães ansiosas que não tem conhecimento suficiente de como se comportar a qualquer anormalidade da criança. Em casos de necessidade de seguimento de tratamento há um sistema de agendamento eletrônico da consulta na unidade de saúde mais próxima; 4) exercício da medicina de urgência para toda a população. O pronto atendimento em São Paulo é uma estrutura física com concentração de tecnologia, com ambulância para remoção de pacientes, aberta 12 ou 24 horas por dia e durante os fins de semana, o que acaba servindo para desafogar os pronto-socorros de hospitais.

Outra porta de entrada ao sistema único de saúde (SUS) são as unidades básicas que mantêm o modelo tradicional de atenção básica com possibilidade de agendamento direto com o médico clínico, o ginecologista e o pediatra por parte do usuário. Nestas unidades não há população cadastrada por área territorial, não há visitas domiciliares por parte de médicos, não há agentes comunitários de saúde e não há NASF.

O sistema de referência para a ESF, o modelo tradicional e o Pronto Atendimento são os Ambulatórios de Especialidade e os Hospitais. Ampliar a capacidade resolutiva dos ambulatórios de especialidade transformando-os em hospitais-dia é um passo importante para diminuir o gargalo no acesso a intervenções de média complexidade. Esta é um dos aspectos da proposta do “Hora Certa”, capitaneado pela atual administração da Secretaria Municipal de Saúde. A construção de dois novos hospitais municipais e a reativação de leitos hospitalares nos já existentes para as intervenções de alta complexidade faz parte da política de melhoria de acesso à atenção secundária e terciária.

A segunda marca da nova administração será os Centros de Saúde Integrados. O quanto da Estratégia de Saúde da Família terá nestes Centros de Saúde Integrados ainda não sabemos. Só podemos esperar que a ESF, a atenção básica que deu certo para 90 milhões de brasileiros em todos os rincões deste vasto território e já é uma referência mundial, faça parte deste modelo de atenção básica.

Davi Rumel
Medico Sanitarista, Dr em Epidemiologia.
Coordenador ESF/Sul.
Associação Saúde da Família.

Monday, June 25, 2012

Quinta Internacional e a Fé Bahai

Uma conversa com um amigo me inspirou a escrever um pouco neste blog sobre A Quinta, idéia que já vem amadurecendo algum tempo na minha mente inquieta. Escrevo inicialmente os textos que trocamos via email e em seguida as minhas ponderações sobre A Quinta.

Caro Amigo

Eu te respeito assim como respeito a todos que acreditam que Deus criou o Homem e que Ele envia manifestantes à humanidade de tempos em tempos. Reconheço que este é um dos dogmas da Fé Bahai. Eu também acho digno de respeito aqueles que acreditam que o Homem é quem criou Deus para tentar se aproximar de uma perfeição na sua jornada na Terra e resolver o medo da morte. Respeito aqueles que acreditam que todos os manifestantes de Deus são na verdade homens carismáticos e iluminados intelectualmente, mesmo que uma grande massa de seguidores e eles mesmos acreditem terem sido enviados por Deus.

Cheguei à Fé Bahai por duvidar de qualquer dogma e estar sempre na busca da unidade na diversidade. Fora as nossas diferenças de como chegamos à Fé Bahai e de como aceitamos ou não a divindade de Bahaullah, a prática da religião nos une: a prioridade para crianças e adolescentes na educação por valores, a paz, a ecologia, os direitos humanos, respeito a todas as fés religiosas ao incluí-las em um todo histórico e o modelo de governança e de processo de decisão. Pertencer a uma comunidade que tem esta prática, e que acolhe todos que aceitam esta prática independente de suas motivações é o que me fez Bahai. Será que tem espaço para aceitarem um cara como eu na Fé Bahai? Dá para respeitar Bahais que não acreditam na divindade de qualquer ser humano que tenha passado pela Terra? Dá para respeitar Bahais que aceitam a Fé pela uso da razão deles e não pelos dogmas de outros? 

Um abraço, Davi


Oi Davi,

Primeiro fico feliz em saber que esse assunto rende uma discussão mais profunda. Quanto ao caráter divino dos manifestantes de Deus e da sua natureza como "seres especiais", concordo que afirmar que eles recebem uma revelação de Deus de uma forma única e exclusiva e que são seres com uma natureza independente é algo muito forte e pode passar uma postura dogmática e fechada. Não era essa a intenção.

Acho também importante separar as coisas. Acredito que por um lado os Manifestantes de Deus tem uma posição diferente e única, por outro lado religiões, seitas e cultos construídos depois têm um caráter totalmente distinto. Criar seitas, adotar costumes de um povo como sendo referencias espirituais, multiplicar santos e ídolos como uma profissão de Fé e adotar milagres com prova da existência do Divino não é algo que um homem ligado a ciência tanto quanto a religião pode fazer. Dai entramos naquela contradição tradicional levantada por muitos, pode um homem inteligente e racional aceitar a espiritualidade na sua vida sem ser tomado por dogmas e superstições? 

O que citei (me referindo a um texto de Bahá'u'lláh) é a Fé e amor a Deus como motivação de intenções puras para com os nossos semelhantes. Em uma epístola Ele se refere as intenções de políticos e poderosos que fizeram grandes realizações no passado mas que secretamente nutriam desejos, ambição por reconhecimento e poder. Acredito que o motivo central desse "erro" seria não entender a natureza espiritual de nossas vidas. De dogmas vazios o mundo já está cheio... 

Quanto a tua colocação se a Fé tem lugar pra você do jeito que você é, eu também sempre me pergunto se a Fé Bahái tem um lugar pra mim já que não sou nem estou próximo de espelhar o que Abdul-Bahá descreve com sendo um Bahá'í de verdade. Sendo assim: Bem vindo ao clube!

Abraço grande,
Amigo


A Quinta

Caros colegas que um dia se vincularam a movimentos ou partidos revolucionários, vinculados ou não a primeira (de Bakunin), a segunda (de Marx) a terceira (de Lenin) ou a quarta (de Trotsky) internacional:

Gostaria de compartilhar que entrei em um Movimento Revolucionário Internacional ou "A Quinta" ou Fé Bahai que já conta com milhões de membros a nível internacional e alguns milhares a nível nacional. As pessoas se tornam Bahais por diversas razões. A maioria são pessoas de fé religiosa que procuram encontrar uma ordem e uma razão existencial para viver e morrer. Outros são ex-marxistas como eu que procuram uma nova ordem social. Outros são ex-alcoólatras que encontram no movimento uma razão para estarem longe da bebida. Outros têm alguma doença mental que precisam de algo estruturado para organizar o caos de suas mentes. Outros são pessoas ou minorias que costumam não serem acolhidas ou respeitadas. Enfim, o movimento acolhe a todos, e seja qual a razão da entrada todos acabam aprendendo a ter Fé, a agir pelo benefício do bem comum e se tornarem pessoas melhores.

O que queremos:

1. Queremos uma nova ordem que venha a substituir gradativamente a velha ordem através da construção de novos modelos de organização da sociedade. Este novo modelo tem como base a solidariedade e não a competição; o atendimento das necessidades de consumo legítima dos pobres, mas não do consumismo; uma educação de crianças por valores; resolução de conflitos através da mediação e no aperfeiçoamento espiritual do ser humano.

2. O princípio básico é a unidade na diversidade. Portanto participa de todos os movimentos que unificam a humanidade. Cada membro deste movimento deve fazer parte de qualquer dos seguintes outros movimentos: igualdade do homem e da mulher no mercado de trabalho, no valor a ser dado ao trabalho de manutenção da família, contra a discriminação racial, ecologia, saúde pública, educação em geral e de valores em particular, direitos humanos, direitos de qualquer minoria, liberdade de expressão, resolução de conflitos por mediação-arbitragem, etc... Este pertencimento envolve escolher fazer parte de conselhos gestores populares, organizações inter-religiosas, ou fazer parte como voluntário de ONGs ou outras instituições do terceiro setor que atuem nestas áreas. Vota-se em eleições como qualquer cidadão, mas não se participa de partidos políticos, pois hoje os partidos têm que obedecer a lógica da divisão e não da unidade para vencerem. A Democracia Liberal não é o fim da História para os Bahais.

3. A mudança da sociedade sempre se dará por forma pacífica, transformado-a através de canais legais e através de um longo e gradativo processo de construção. Para isto faz-se necessário investir no ser humano que se dispõe a participar deste movimento. O primeiro investimento é se despir de qualquer julgamento sobre a conduta das outras pessoas. Zero tolerância para fofocas. O segundo investimento é no desenvolvimento espiritual da pessoa: atributos como honestidade, respeito mútuo, capacidade de expressar idéias e sentimentos, capacidade de ouvir os outros, humildade, não uso de drogas que afetam o comportamento, competição por excelência (constante superação para servir cada vez melhor), mas não competição contra o outro, etc.

4. O nosso modelo econômico tem como base a família e não o indivíduo como na sociedade atual. O modo como definimos e organizamos nossa economia expressa o que valorizamos e está intimamente relacionado ao avanço da igualdade entre mulheres e homens. A sociedade deve desenvolver novos modelos econômicos que surgem de um entendimento favorável de experiência compartilhada, possibilitando que os seres humanos enxerguem uns aos outros. O fato do trabalho para a garantia do sustento e os cuidados no seio da família não serem mais compartilhados entre homens e mulheres cria tensões diárias para a disponibilidade de tempo para carinho e atenção aos filhos e de um para com o outro. Onde mais a economia competitiva avança, é menor o número de filhos por família. Estar em casa cuidando dos filhos não é mais um valor nobre. Muitas mulheres hoje têm que optar entre ter filhos ou se desenvolver em suas carreiras. Em muitas áreas da economia, aquelas que optam por suas carreiras encontram um mercado dominado no topo por homens e adiam ter seus filhos - com prejuízo a saúde - para não perder a “competição” no início de suas carreiras. Ter filhos não é valorizado nem economicamente - redução de salário e pouco tempo de licença maternidade - nem em suas carreiras. A licença paternidade é uma miragem na grande maioria dos países. Já as que optam por abrir mão de um início de carreira quando ainda jovens não ganham salário por dar maior atenção aos filhos nos primeiros anos de vida. O não compartilhamento econômico da mãe reafirma o papel de provedor para o pai, afastando-os de uma relação de igualdade. 

5. Outro aspecto de nosso modelo econômico é a sustentabilidade ambiental. O modelo predatório atual vai levar a crescentes rupturas da natureza e por fim à destruição da humanidade. O nosso movimento participa ativamente da construção de uma nova ordem com base nas conferencias decenais da ONU sobre desenvolvimento sustentável. Estivemos na ECO 92 e desde então participamos da Rio+10, Rio+20 e os paralelos encontros da Cúpula dos Povos.  

Como nos organizamos:

1. O desenvolvimento espiritual passa por admitir a existência de Deus, seja ele o criador do homem, seja ele criado pelo homem. Deus se relaciona com a humanidade através de profetas, mensageiros, que a cada tempo e local traz novas visões de mundo e organização social para a humanidade dar um salto de qualidade (para os ateus podem ser os filósofos). Todas as religiões monoteístas são consideradas como parte de um todo historicamente determinado. A última mensagem para os tempos atuais foi trazida por Bahaullah, cidadão/mensageiro de Deus de origem persa que viveu e produziu seus escritos na segunda metade do século XIX. Ele é o responsável pela criação do movimento. Este movimento ganhou estrutura internacional nos meados do século XX. A primeira reunião de sua direção internacional ocorreu em 1962. A direção se denomina Casa da Justiça e está sediada em Haifa, Israel, local onde Bahaullah morreu (estava em prisão domiciliar na fortaleza de Aca, Palestina, Império Otomano, hoje Haifa, quando morreu). Há grande número de Bahais na India, na América do Norte e mais recentemente na China. No Irã o movimento é ilegal, a direção está presa, muitos Bahais foram assassinados, muitos se encontram no exílio e os milhares de remanescente continuam perseguidos.

2. Há quatro tipos de reunião: a de base geográfica, o círculo de estudos com os amigos, reuniões abertas para com os amigos que não são do movimento e reuniões de desenvolvimento espiritual. As reuniões de base geográfica têm três partes: relaxamento/orações, monitoramento das ações para melhora da qualidade de vida naquela base geográfica, e lanche coletivo. As reuniões de círculo de estudos são de leitura de livros e textos do movimento que têm um instituto além de extensa bibliografia para alimentar estes círculos. A freqüência e a escolha do material de estudo ficam a critério de cada círculo. As reuniões abertas se dão na casa de Bahais que convidam pessoas que queiram se inteirar das idéias do movimento. Em geral são organizadas por temas. As reuniões de desenvolvimento espiritual estão relacionadas com a leitura de orações e/ou desenvolvimento de habilidades artísticas e são abertas para Bahais e não Bahais também. 

3. O objetivo de cada reunião é a busca de consenso em torno do tema da reunião. Uma vez colocada uma fala na roda de conversa, ela deixa de pertencer ao indivíduo que a expôs e a fala passa a pertencer ao grupo. Não há ganhadores ou perdedores na troca de idéias.

4. Uma vez membro formal do movimento, contribuições para financiar sua manutenção devem ser realizadas. A freqüência e o montante estão a cabo de cada indivíduo e é assunto privado. A interrupção das contribuições não impede a participação no movimento. Estas contribuições ajudam a manter as sedes que servem como livraria e locais de reuniões. A cidade de São Paulo tem uma sede. 

5. Fazer parte da Fé Bahai de forma formal é uma decisão de cada indivíduo que se declara estar pronto para assumir este compromisso em sua vida. O movimento propaga suas idéias de forma orgânica (uma a um), mas não visa a converter ninguém. Se aceita que um dia, após várias conversas e experiências, algumas pessoas descobrirão a importância da Fé Bahai em suas vidas. Outras retornam à suas religiões com outro olhar. Outros resolvem aderir aos movimentos de unificação da humanidade com mais afinco, mas querendo manter sua individualidade acima de qualquer compromisso de grupo. Para um Bahai qualquer influência na elevação da conversa com quem quer que seja rumo aos propósitos do movimento é uma vitória.

6. A grande inovação para a governança da humanidade está na forma de eleição da direção. Para a direção deste movimento a votação não só é secreta como não há candidatos nem campanha. Todos são candidatos e podem a vir a ser eleitos. O momento da eleição é um momento de silêncio e concentração. Uma vez eleito para a direção a pessoa eleita está na função de servir e, portanto, atuará de forma anônima, em nome da direção do movimento (não se pode utilizar o cargo para fins de promoção pessoal). Uma vez eleito a pessoa pode pedir a demissão do cargo após a primeira reunião da direção recém-eleita caso haja razões pessoais para tal. Todos os órgãos de direção têm um período de mandato (cada quatro anos).

Concluindo:

As condições objetivas para a evolução de uma humanidade dividida e competitiva para uma humanidade unificada e cooperativa estão dadas: a internet, a difusão do inglês como a língua de comunicação entre todos os povos e o risco de destruição do Planeta pelo desenvolvimento não sustentável. A Quinta Internacional ou Fé Bahai se dispõe a criar as condições subjetivas para tal transformação.

Monday, August 27, 2007

Deixa de ser frouxo que o ferro é duro!

Esta peça é fruto do testemunho de reuniões da base do PCB em São Caetano do Sul, durante os anos de 1980 e 81. Todos os persongens correspondem a pessoas reais, assim como os diálogos reproduzem fatos.

Em memória ao amigo Artur Cidrim, que revisou as primerias versões desse texto. Uma pequena homenagem a quem levou, através do teatro, a alegria e a meditação para pessoas que de outra forma não teriam tido contato com essa arte.

“DEIXA DE SER FROUXO QUE O FERRO É DURO"

Personagens:

Gilmar
Juca
Cajarana
Negão
Severino
Maria
Marcos
Careca
Relações Industriais
Irmão da Maria
Pretendente de Maria
Mãe da Maria
Dono do Bar


Autor: Davi Rumel


ATO 1

Ambiente: Bar com balcão e mesa. Estão no balcão tomando cerveja: Marcos, Gilmar, Juca, Negão, Severino. Maria e Cajarana aparecem no bar e se dirigem a eles

Cajarana: Oi, turma!
Maria: Oi! (beija a todos)
Cajarana: Como é que é chefia, quanto é um sanduba desse de pernil?
Dono do bar: Dez reais.
Cajarana: Esquece o sanduba e me dá uma coxinha (dirige-se a mesa).
Juca: Manda mais uma loirinha que o solteiro chegou.
Cajarana: Ichi! Vou casar logo e estou cheio de despesa. Alguém vai ter que pagar esta cerveja para mim.
Maria: Como é que vai ser a greve esse ano? Dentro ou fora das fábricas?
Negão: 0 ano passado foi dentro e deu certo.
Gilmar: Este ano talvez tenha que ser diferente. 0 problema é que não vai ser fácil organizar a greve com os pelegos no Sindicato.
Cajarana: É importante que na primeira assembléia elejamos uma comissão de negociação. Nesta comissão você deve entrar (dirigindo-se a Gilmar), assim como alguém da diretoria.
Marcos: Êpa! Vai devagar! Porque alguém da diretoria?
Cajarana: For que se formos contra que alguém da diretoria participe, o pessoal poderá pensar que é briguinha da oposição. Agora que estamos em campanha salarial, devemos estar todos juntos. Se o Sindicato não estiver forte, não dá para encarar uma negociação com os patrões.
Negão: Chi, mas aqueles caras são tão ruins.
Gilmar: Vai devagar! Uma coisa de cada vez. Nas próximas eleições a gente tira eles de lá. Agora é momento de mobilizar a categoria e para isso precisamos dos recursos do Sindicato.
Juca: Não temos dinheiro nem para molhar a garganta, o que dirá para rodar boletim.
Marcos: Tudo bem. Quem vai defender as nossas propostas?
Maria: Vamos ver se aparece gente nova, senão o pessoal cança de toda vez sempre as mesmas caras.
Juca: A mesma cara e a mesma coragem. Precisamos tomar cuidado. Fora os diretores do Sindicato, ninguém tem estabilidade no emprego, e todo mundo sabe que nas assembléias está cheio de olheiro.
Gilmar: Mas mesmo assim é bom que mais gente fale. Precisamos horizontalizar mais e verticalizar menos.
Severino: Acuma?
Gilmar: Precisamos que a categoria sinta que mais gente está assumindo a direção da sua luta. Assembléias em que são sempre as mesmas pessoas que falam, acostuma mal este povo. Eles só entram na briga se estiver o pessoal conhecido na cabeça, como se sem aquela liderança a luta deixasse de existir. Precisamos mudar isto.
Juca: Entendi (sem muita convicção), então vamos ver quem arrisca
a pele.
Negão: Eu topo. Deixa comigo. Só vou querer que alguém me ajude a por as coisas no papel para eu decorar em casa.
Cajarana: Eu ajudo.
Severino: Licença. Deixa eu dar um palpite. Nós estamos discutindo o que fazer na assembléia, mas quem é que vai escutar a gente. Se depender da diretoria, nós vamos falar para as paredes. Eles vão distribuir poucas convocatórias. Precisamos dar uma mãozinha.
Maria: Eu distribuo a convocatória na minha fábrica.
Juca: você está caçando desemprego mulher? ninguém deve distribuir dentro de sua própria fábrica. Cada um distribui em fábrica d1ferente.
Gilmar: Vamos então para o Sindicato.

ENTREATO

Seqüência de slides e falas retiradas de texto de jornal da época demonstrando a evolução dos acontecimentos.


ATO 2

Ambiente: Local de reunião com rádio ligado. Alegria no ambiente Negão: não sou craque de bola, galã de novela, nem cantor de roquenrou. Sou é operário, mas estou nas paradas. Olha lá! (erguendo o Jornal) "METALÚRGICOS EM GREVE".
Gilmar: 70% do pessoal está de braços cruzados. 0 negócio agora é ver o quanto a turma aguenta. Temos que ampliar o fundo de greve. Saco vazio não para em pé.
Cajarana: Ta todo mundo com a gente. As igrejas estão recolhendo mantimentos. Na assembléia Legislativa tem um posto de coleta aberta o dia todo. Os estudantes também estão ajudando, trazendo dinheiro e sendo voluntários nos postos de coleta.
Radio: Atenção! Atenção! Radio Camanducaia em edição extraordinária! 0 Tribunal da Justiça do Trabalho de São Paulo acabou de declarar que a Greve dos Metalúrgicos do ABC é legal (comemoração)
Rádio: Silêncio! Silêncio! A noticia ainda não acabou. 0 despacho do Digníssimo Meritíssimo determina ainda que seja dado um aumento de 7%, o que vem a ser 3% a mais que a proposta da FIESP, 8% a menos do que queriam os metalúrgicos.
Negão: (ambiente de consternação) Por que o digníssimo corníssimo viadíssimo, não deu logo os 15%?
Marcos: Não tem nada não. Ele deu só 7%. Vamos botar pra quebrar para conseguir o resto.
Severino: 15% ou Greve. A greve continua.
Negão: (entrando no local, dirigindo-se a Juca e Gilmar) Vamos lá minha gente. Por que esta cara de velório? Qual é o drama?
Gilmar: 0 drama é que a turma do interior segurou a greve até agora com muito custo. Não acredito que os patrões vão ceder. E, nesta altura, a briga não é mais com os patrões, e sim com o governo. E a gente sabe que as fábricas têm seguro contra grave. 0 fato do Tribunal não ter decretado a ilegalidade da greve é inédito. Isto garante que ninguém poderá ser dispensado por justa causa, que ganharemos estes dias e ainda abre o precedente para que o mesmo aconteça com qualquer outra greve que venha a ocorrer no país.
Negão: Trocando em miúdos, você está propondo o quê?
Gilmar: Vamos parar para pensar. Temos força para derrubar este governo? (pausa) Não. Então vamos parar.
Marcos: Você está louco cara? Você está querendo parar quando estamos no começo, no auge da mobilização!
Maria: Quando estamos parados os patrões não tam lucro, e eles só entendem o que queremos quando começamos a mexer em seus bolsos.
Eu não estou entendendo nada. A gente organiza uma grave para pedir aumento e depois é para a gente ficar contente porque recebemos os dias que ficamos em greve? Ouvi dizer que no porto de Santos há uma enorme quantidade de navios parados porque as exportações de carros pararam. Isto é prejuízo para os patrões.
Gilmar: E para o Governo? É prejuízo? Só os trabalhadores que pagam impostos neste país! É o conjunto dos trabalhadores quem está cobrindo estes prejuízos.
Marcos: 0 que você quer dizer então? Que nós nunca vamos conseguir nada, que temos que aceitar tudo que vem dos patrões?
Gilmar: Não é nada disto. É que ainda não é hora para o tudo ou nada. Precisamos acumular forças. Uma greve dessas, para ter sucesso, precisaria do apoio de todos os trabalhadores do país. E não e uma questão só de greve, é um problema de poder político. Não adianta nada dar um aumento de 15% e aumentarem os preços d tudo no dia seguinte em 30%.
Marcos: Então porque entramos em grave?
Gilmar: Para ver até onde podíamos ir neste momento. Conseguimos uma paralisação geral no ABC, parcial no interior, um julgamento inédito de um tribunal de trabalho dando legalidade a uma greve, e um aumento não ideal, mas superior ao proposto inicial pelos patrões. Acredito que tudo isso fortaleceu a nossa categoria e os Sindicatos. Surgiram lideranças autênticas que hão de tirar os pelegos dos Sindicatos.
Juca: Então vai lá na assembléia dizer isto. Até uma semana atrás estávamos convencendo as pessoas a entrar em grave pelos 15%. Agora é para voltar para a fábrica porque só mudando o governo é que vamos conseguir o que queremos.
Gilmar: Eu não vou dizer nada. Eu não vou arriscar minha cabeça, e quem quiser brecar o movimento agora vai ser atropelado. Vamos ver até onde todos vão agüentar. Mas se vermos que a solidariedade diminuiu e a turma está furando a greve, eu vou propor o retorno na assembléia do Sindicato.


ENTREATO

Slides e Leitura de trechos de Jornais da época (1980), mostrando os acontecimentos.


ATO 3

Ambiente: Local de reunião

Negão: (entrando) Prenderam o Lula.
Cajarana: Era só o que faltava. Além de terem invadido o Sindicato prenderam a liderança.
Juca: Está difícil segurar a turma no piquete. As fábricas pequenas e médias estão quase todas trabalhando.
Negão: É, acho que está na hora de parar. Quanto mais tempo passa, mais difícil fica voltar para a fábrica. O pessoal mais mobilizado vai ser identificado facilmente.
Severino: 0 Gilmar tinha razão. Vamos voltar para a fábrica.
Gilmar: Nada disso, agora é que a gente não deve voltar.
Marcos: Esse cara é doido. Queria parar quando a gente estava por cima e quer resistir quando a gente está por baixo.
Gilmar: Devemos manter a greve nem que seja mais por alguns dias. Não pelos 15%, mas pela desocupação do Sindicato pela polícia e pela liberdade da liderança. Precisamos entrar em contato com todas as correntes de oposição do país. Estão em jogo as liberdades democráticas conquistadas até agora.
Severino: Como organizaremos esta solidariedade?
Juca: O apoio dos deputados é fundamental. Precisamos trazê-los para o ABC para participar da próxima assembléia. Eu vou até a Ordem dos Advogados pedir para que eles se pronunciem a respeito.
Juca: Eu vou para a assembléia Legislativa.
Marcos: Eu vou com você.

ENTREATO

Slides e textos de jornais da época.

ATO 4

Ambiente: Bar com muita garrafa no balcão.

Negão: Depois da greve fui mandado embora na primeira leva da
minha fábrica. Já passei em dois testes, mas na hora de assinar a carteira desconversam. Ontem saí cedo de casa todo animado achando que tinha arrumado trabalho. Cheguei lá e me disseram que infelizmente não ia dar porque houve um engano e minha vaga já tinha sido preenchida.
Juca: Pode ter certeza irmão que você esta, na lista negra da FIESP. Aqui no ABC você não consegue mais emprego.
Negão: Não fale isto não, eu conheço alguns amigos na CONTAL e vou tentar lá amanhã.
Marcos: Eu tive mais sorte. Fui mandado embora, mas depois de um mês consegui emprego perto da minha casa. São três turnos em rodízio e uma poeira lascada, mas pelo menos é trabalho. Com o fundo de garantia que levantei depois de seis anos de firma, deu para comprar um Fusca 75.
Negão: Se eu não conseguir emprego, estava a fim de encarar um táxi. Mas a turma do bairro que trabalha na praça, disse que com o aumento da gasolina mal e mal está dando para comer. E olha que eles batalham de 12 a 14 horas por dia.
Cajarana: (Chegando no bar) Olá moçada! Chorando as mágoas? Vamos deixar de choro e trocar umas idéias de como é que vamos faturar aquele sindicato.
Juca: Você tem razão, vamos tocar o jogo, e já tem bola dividida.
Gilmar: (entrando) Estão falando mal de mim?
Juca: Ia começar a falar.
Severino: (Entrou junto com o Gilmar) Oi gente?
Negão: Boas noites.
Cajarana: Por favor, sentem-se. O Juca estava falando da eleição do sindicato.
Juca: 0 problema é o seguinte: a atua1 diretoria propôs que façamos uma chapa única com eles. Entraria na Executiva eu e o Gilmar, eles entrariam nas outras cinco vagas e nós poderíamos indicar metade dos diretores de base. É claro que nesta composição quem fica com a presidência são eles.
Gilmar: Esta proposta é boa. 0 que o atual presidente quer é não perder o emprego de dirigente sindical. Continuar roubando e não voltar para a fábrica. Agora, política para a categoria ele não tem, e como nós temos, poderemos fazer muito mais do que fazemos agora, já que estamos todos trabalhando e sem estabilidade no emprego.
Marcos (Bate na mesa): Achei nojenta esta proposta. Você prefere conciliar com o ladrão que acreditar na categoria? Este pulha que está aí na Diretoria está totalmente desgastado na base. Por que malte-lo? Temos que ir com uma chapa de oposição com o Gilmar na cabeça, que é o líder de fato da categoria.
Cajarana: (interrompendo) não se esqueça que afanaram nas eleições anteriores.
Marcos: Dá licença, ainda não acabei meu raciocínio. E como eu estava dizendo, se não lançarmos uma chapa de oposição, outros lançarão. E aí vai ser bonito, nós e uns pelegos de um lado, e a categoria com a liderança de uns aventureiros de outro.
Cajarana: Tudo isto que você falou é muito bonito. Você é muito ingênuo. Você acha que eles vão entregar o sindicato de graça? Eles estão com a máquina na mão. Na última eleição, quem ganhou não levou. Há mil mandracarias para trocar os votos das urnas. 0 processo de fraude da última eleição corre na justeza até hoje.
Marcos: você é frouxo mesmo, não acredita na massa.
Juca: Espera lá, vamos com calma. Aqui ninguém é frouxo. É que o ferro é duro mesmo. Proponho que consultemos as pessoas próximas da gente. Vamos ver o que eles acham que devemos fazer.
Severino: Boa idéia.

(Descem ao público e cada ator discute com um grupo. Sobem e continuam com a reunião)

Cajarana: A maioria dos que conversei acha que nós temos que ir para a briga.
Negão: Tem gente que disse que irá até parar de conversar com a gente se sairmos juntos com eles.
Marcos: Do meu lado é a mesma coisa.
Juca: Eu fui procurado pela Diretoria e eles já querem a carteira de trabalho de todo o mundo para inscrever a chapa.
Maria (entrando): 0i gente, acabo de ser despedida da fábrica.
Severino: Oh xente, lá se foi nosso Departamento Feminino.
Marcos: estão vendo como é que é. Com uma mão propõe chapa conjunta, com a outra dedam para os patrões os melhores elementos da base. 0 Negão até agora não conseguiu emprego. Agora é a vez da Maria estar no olho da rua.
Gilmar (em pé): Vamos pro pau, e seja o que Deus quiser. Precisamos marcar o lançamento de nosso Movimento de Oposição.

DIÁLOGO CAJARANA-CARECA

Ambiente: ponto de ônibus.

Cajarana: 0i Careca, como é que você esta?
Careca: Estudando.
Cajarana: Por que você não participa mais de nossas reuniões?
Careca: É que eu não posso faltar à escola, e fim de semana é o único tempo que eu tenho para estudar.
Cajarana: Você está estudando o quê?
Careca: Técnico de laboratório de analises clíinicas.
Cajarana: Mas o que tem isso a ver com seu trabalho na fábrica?
Careca: É que eu gosto de biologia e quero ser médico. Você vai ver, eu aindo vou ser médico.
Cajarana: Você entra que horas na escola?
Careca: Às 7 h. Saio 6 h da fábrica e vou direto para lá. Janto lá pela meia noite e às 5 h estou de pé de novo. Tenho que fazer duas horas extras por dia, se não, não dá para pagar a escola. E você, Está estudando?
Cajarana: Eu? Eu estou fazendo os exames de madureza do Segundo Grau. Já fui aprovado em quase todas as matérias, só faltam inglês e matemática. Matemática estou tentando estudar sozinho, mas inglês não dá. Tem alguém aí para me ajudar?
(dirigi-se ao público)
(A partir deste momento, cada um fala sua visão de ensino com foco de luz somente sobre o ator)
Gilmar: Eu só fiz o primário. Comecei com 10 anos e terminei com 25. Gosto muito de ler, mas livro grosso de letra pequena não dá. Logo durmo. Meus filhos estão estudando. 0 mais velho é um gênio. É o primeiro da classe. Eles vão ser doutor, vocês vão ver.
Marcos: Eu tenho muita vontade de estudar, mas como eu trabalho em turno, atualmente não dá. Eu queria era ser advogado, mas hoje eu só penso em me aperfeiçoar na técnica.
Severino: Estudar? Como, se trabalho de 8 a 10 h e gasto 4 h em condução por dia?

ATO 5

Ambiente: Mesa de bar

Juca: Nesta altura dos acontecimentos, 2/3 dos companheiros que queríamos em nossa chapa já estão no olho da rua.
Cajarana: Esta do Gilmar ser mandado embora....
Juca: Precisamos arrumar um jeito de registrá-lo em alguma fábrica o mais rápido possível. Ele tem que sair na cabeça da chapa.
Severino: (entrando) Oi minha gente, como estão as coisas?
Cajarana: 0 Gilmar foi mandado embora.
Severino: Tá danado, do jeito que as coisas estão, só estou esperando a minha vez.
Gilmar:(Entrando afobado) Oi seus merdas, os caras por pouco não passam a perna na gente. A inscrição das chapas se encerra amanhã.
Cajarana: Está gozando...
Juca: Mas eles não afixaram o edital no sindicato e em nenhuma empresa. Os companheiros que estão acompanhando os jornais da Região não disseram nada.
Gilmar: Então olha aí sua besta: Popular da Tarde, 19 de Abril, na seção de compra e venda de automóveis, desse tamaínho para ninguém ver.
Juca: Que canalhas.
Cajarana: Como é que você descobriu?
Gilmar: Por sorte um conhecido do sindicato dos bancários, que estava procurando o edital de convocação de uma assembléia daquele sindicato, viu, achou estranho o local, e mandou um recado me avisando.
Negão: Mas eu conversei ontem à noite com o Albenati, que é da Diretoria do sindicato, e ele em disse que ainda não havia saído.
Severino: Os funcionários que trabalham no protocolo da Delegacia Regional do Trabalho também não sabem de nada.
Gilmar: A trama foi bem feita. Publicaram entre vários anúncios do jornal menos lido da cidade. Não cumpriram a Lei que exige que se afixe a publicação no Sindicato. Deve haver gente na Delegacia do Trabalho ajudando a falcatrua, pois o edital nem passou pelo protocolo.
Marcos: Nossa Senhora, já pensou perder o Sindicato por causa de um golpe na publicação do edital?
Cajarana: Vamos agir rápido. Ninguém dorme hoje. Precisamos montar rapidamente uma chapa e ir na casa das pessoas pegar os documentos. Juca você foi promovido a Presidente de nossa chapa.
Gilmar: É isto mesmo. Nós gastamos muito tempo atrás de emprego para os companheiros da chapa e quase perdemos o edital. Temos que ir com quem está empregado. Eu participarei ativamente da campanha. você (dirigindo-se ao Juca) e o Cajarana devem encabeçá-la.
Marcos: Eu sou contra.
Gilmar: Só podia ser, mas agora não dá mais para discutir. Vamos trabalhar.
Severino: Porque a Maria não veio?
Cajarana: Seria bom que depois dessa maratona você fosse à casa dela e saber o que está acontecendo. E você Negão? Tá muito quieto.
Negão: (foco de luz só nele) Eu só sei que o dinheiro do fundo está acabando e eu até agora não consegui emprego. É sempre assim, na hora H desconversam. Não há duvida que estou na lista negra da FIESP. Como é que eu saio dessa?

Diálogo

Ambiente: Portão de casa:

Severino: Não dá nem para você ir à festa de lançamento da chapa?
Maria: Infelizmente não dá. Você nem queira imaginar como está o ambiente aqui em casa.
Mãe da Maria: (uma voz de mulher a chama de traz) Maria, você é uma filha ingrata. Se teu pai morrer do coração a culpa é tua.
Irmão de Maria: (voz de homem por trás) Você está andando com um monte de comunistas. Eu vou te vigiar. Você não sai mais na rua sozinha. Quando você for procurar emprego eu vou junto e fico te esperando no portão da fábrica até você sair.
Severino: Você não acha que já está na hora de sair de casa.
Maria: Para a mulher não é fácil. Só dá para sair casando. E é difícil encontrar um homem que queira casar sem prender a mulher.
Pretendente: (voz de homem atrás) Maria, se você quiser casar comigo tem que parar de trabalhar e de se meter em bagunça. Tem que ficar em casa cuidando dos filhos. Afinal, você não é a rainha do lar?
Severino: você poderia morar com uma amiga.
Maria: Eu gosto muito da minha família e eu não estou a fim de perder a amizade deles. No fundo, a nossa família é o único local seguro. Vou dar um tempo até passar esta fase, depois eu apareço.
Severino: Tudo bem. Aparecerei por aqui para lhe trazer notícias.
Maria: Lembranças ao pessoal.
Severino: Até.

DIÁLOGO

Ambiente

Mesa num escritório.

Relações Industriais RI: Como Relações Industriais dessa empresa queríamos ter uma conversa com nosso futuro Presidente. Você é um operário antigo, e não temos nenhuma reclamação a fazer em relação ao seu trabalho. Agora, sobre tua atuação lá fora, temos uma pasta contendo algumas anotações.
Juca: Poxa, não sabia que eu era tão importante assim.
RI: Na primeira assembléia da campanha salarial você falou a favor da greve. Depois, em outra assembléia você meteu o pau em um grupo de jovens defendendo a então Diretoria do Sindicato. Na última assembléia você defendeu o retorno ao trabalho contra uma boa parte que ainda queria permanecer em greve. Tendo em vista sua capacidade de liderança e suas posições um tanto ambígüas, resolvemos que você não deveria ser mandado embora, acreditando que você até viesse a fazer parte da Diretoria do Sindicato, o que nos interessa. Sabíamos que você estava junto com o Gilmar organizando uma chapa de oposição, mas acreditávamos que por fim iria preponderar um acordo com a atual Diretoria. Confesso que foi uma surpresa ter saído a chapa de oposição e ainda mais com você para Presidente.
Juca: Circunstâncias da vida.
RI: Mas não gostamos muito dessa chapa. Temos informações seguras de que há comunistas em sua chapa. Você sabe que nossa empresa tem muita força, inclusive sobre muitas empresas aqui de nossa cidade. Poderemos colocar nossos contatos a serviço do vocês, ou contra vocês. Para isto você também deve colaborar. Gostaríamos que você isolasse os comunistas de sua chapa. Os aspectos jurídicos para esta transação, nós mesmos encaminharemos.
Juca: Me espanto muito em saber que há comunistas em minha chapa. Conheço todos e ninguém é ligado a partido algum. Depois, observe, a nossa chapa quer mudar o Sindicato para evitar uma futura greve como ocorreu neste ano. Sabemos que o atual Presidente tem seus interesses eleitorais e quer radicalizar para aparecer. A chapa dele é que deve ter comunistas. Já estão falando até em greve no ano que vem!
RI.: Quem são os comunistas da outra chapa?
JUCA: Sei lá, só disse que deve ter. O que a nossa chapa quer é um Sindicato que administre bem a assistência dada aos trabalhadores. A atual Diretoria, como não é muito respeitada pela base, é que irá radicalizar, para depois o presidente se candidatar a Deputado Federal, e pelo partido da oposição. O Senhor vai ver.
RI.: E os comunistas de sua chapa?
Juca: Não tenho conhecimento disso.
RI.: Estamos acompanhando o movimento de vocês. Se você quiser colaborar conosco nós vamos colaborar com você. Até logo Presidente.
Juca: (saindo rebolando): É preciso ter um jogo de cintura...


ATO 6

Ambiente: reunião no Bar.

Marcos: Ele roubou e isto não pode ficar barato.
Severino: 0 resultado saiu à noite. No dia seguinte eu fui trabalhar e já me puseram na rua. Só não me despediram antes porque eu estava inscrito na chapa.
Cajarana: 0 mesmo deve acontecer comigo.
Juca: Também, com a polícia ajudando é fácil roubar. Cercaram as ruas próximas ao Sindicato, ninguém pôde ficar dentro do prédio.
Nem os advogados que estão nos assessorando. De madrugada, trocaram os votos com a maior facilidade.
Gilmar: Nas urnas itinerantes, nossa turma não deu moleza. Quando
Eles tentaram sair correndo com a urna, antes que o Manezinho entrasse no táxi, o Carlão deu uma fechada no táxi com o carro dele. Tivemos até que dar trombada em carro para eles não mexerem nas urnas. Agora, dentro do Sindicato não deu jeito, a roubalheira correu solta.
Cajarana: Acredito que a justiça vai anular estas eleições. Todo o mundo sabe que a categoria nos apoiava.
Gilmar: Tem um grupo de advogados que impetraram um mandado de segurança a nosso favor. Dizem eles que é contra a lei a polícia fechar o Sindicato não permitindo o acesso dos fiscais.
Severino: 0 que é mandado de segurança?
Gilmar: Também não sei direito, só sei que temos que nos manter mobilizados para garantir a vitória na justiça.
Juca: Eu não acredito muito nesta justiça não. Você acha que eles vão dar razão a nós e culpar a polícia?
Cajarana: Precisamos divulgar na imprensa e nos outros sindicatos o que está ocorrendo. A grande imprensa não dá uma palavrinha sequer, apesar dos repórteres estarem todos os dias por aqui. Televisão, nem se fala.
Juca: A te1evisão só fala do Biggs, um ladrão que roubou na Inglaterra e que agora está numa boa aqui no Brasil. Sobre a c1asse operária, nada.
Gilmar: Alguém viu o Negão? Ele sumiu.
Marcos: Amanha vou na casa dele.

Monólogos

VOZ: Pelo menos agora você está empregado.
Negão: Mas é um sofrimento. Uma poeira danada. Saio preto lá de dentro. Trabalhei 29 dias seguidos, 12 a 17 horas por dia. Teve um dia que me pediram para fazer extra até as 2 horas da manhã e ainda tive que voltar algumas horas depois, para pegar de novo no batente. Nesta manhã quase desmaio e provoco um acidente de trabalho. Não tenho tempo para mais nada. Compro jornal todo o dia só para manter o hábito. Da mesma forma que comprei, ele chega em casa. No começo, quando chegava em casa estava com o corpo todo moído, mas não conseguia dormir, era a maior zoeira na minha cabeça. Acho que é por causa do barulho das máquinas. Agora, desço do ônibus, paro no bar e tomo umas três ou quatro canas, pois é só quando eu estou meio alto que eu consigo dormir. Minha mulher, coitada, quando eu deito só dá para dar uma. Mas não é o que você esta pensando não. Só dá para dar uma virada, e é ronco até o dia seguinte.
Severino: Você pelo menos é um profissional. Eu sou um peão que aperta parafuso. Para mim não é faci1 obter emprego não. Tem muita gente que nem eu. Com o dinheiro do fundo de garantia eu dei um jeito na minha casa e guardei um tanto para sobrevivermos, eu, minha mulher e três crianças, por dois meses. O dinheiro já está quase no fim. Estou pensando em me aventurar pelo Mato Grosso para ver o que é que dá. Retirante, saí do Nordeste com a esperança de ter trabalho e paz no sul. Mas acho que minha sina é ser errante mesmo.


Ato 7

Ambiente: Bar com muita cerveja.

Juca: E agora? O mandado de segurança não deu certo, o processo contra fraude, sei lá quando é que vai acabar e estamos em véspera de campanha salarial.
Gilmar: Para esta campanha, nós temos uma responsabilidade muito grande com a categoria. Esta diretoria não fará nada por ela. Acho que devemos soltar um boletim em nome da oposição sindical.
Cajarana: Eu acho que isso não leva a nada. Em vez de aumentarmos, estamos diminuindo. Um boletim em nome da oposição sindical é um convite para mais dispensas da turma que está mais próxima da gente. Temos que assumir a derrota. Devemos trabalhar dentro do sindicato, tentar colocar gente na comissão de salário logo na primeira assembléia da campanha e através dela darmos nossa orientação à categoria.
Gilmar: Na minha opinião, uma coisa não tem nada a ver com a outra. Este negócio de participar de comissão de salário, temos que fazer mesmo. Agora, é importante manter nossa autonomia para sempre emitirmos nossa opinião.
Cajarana: Em nome de manter esta autonomia, estamos fazendo um sindicato paralelo. A maioria da categoria nem sindicalizada é. Os sindicatos ainda são muito fracos. Oposição sindical é para o momento das eleições. Fora das eleições devemos trabalhar para levar a categoria para dentro do Sindicato à partir das fábricas. Se em determinado momento for necessário manter uma posição política diferente, você pode se expressar em termos pessoais.
Juca: O Cajarana tem razão. É melhor recuar. 0 clima é de medo. Veja o Marcos, negou-se a vir a esta reunião. Disse que está gostando do emprego, apesar de ser à noite, e com o fundo comprou um fusca 75, que por sinal não sai da garagem por falta de gasolina. Como a maré não está boa, não quer mais arriscar a pele.
Gilmar: Tudo bem, mas se necessário lançarei um bo1etim. Nem que seja só com o meu nome.
Juca: Sabe Gilmar, primeiro você tem é que tratar de arrumar emprego, se não você acaba perdendo a sua esposa, que não está gostando nada, nada de sua nova profissão de político. Político da classe operária não leva dinheiro para casa, leva polícia.
Gilmar: É verdade. Quanto mais a situação financeira aperta, mais eu entro em atrito com minha mulher. E olha que nós nos demos muito bem até hoje. Já se vão 11 anos de casamento.
Juca: (Foco de luz só ne1e) Apesar de toda esta historia ninguém deve desistir da luta não. Não dá, né? Se a gente parar de lutar qual será a nossa saída? Agora mesmo, a minha empresa ameaçou todos os empregados. Ou 2.000 vão embora, ou a gente tem que aceitar trabalhar com redução de salário. Isto bem na hora em que queremos um aumentozinho. Nós temos que ter uma proposta para a categoria. Qual a sua opinião companheiro?

(Apagam-se as luzes)

Fim

Saturday, April 7, 2007

Prefácio

Memórias de uma Derrota – Brasil, 1967-2007


Prefácio


Escrever estas passagens de minha vida não tem o objetivo de exibicionismo. Se estivesse morando no Brasil, não as teria escrito. Já que tomei a decisão de encerrar minha carreira profissional e atividade política no Brasil, acho que minha experiência e idéias talvez venham a ser úteis aos mais jovens que porventura venham a ler esta história e é tambem um convite ao diálogo com os companheiros que viveram os mesmos eventos.
Para mim, também é um exercício de organização de idéias. Muitos acontecimentos e desilusões necessitavam ser digeridas. Esta história me ajudou a entender as mudanças que tinham ocorrido em mim e ao meu redor. Espero que seja útil a vocês.

Querendo entender

Querendo entender


Quando criança, compartilhava o mesmo quarto que minha avó Raquel. Ela nasceu numa aldeia judaica na Polônia, mas só falava idiche e mal o portugues. Minha avó trazia sempre consigo a última carta que havia recebido de suas irmãs. Seus pais tinham nove filhos vivos antes da segunda guerra, muitos já casados e com seus respectivos filhos. Depois da segunda guerra, só o irmão mais novo, que era solteiro deu sinal de vida e veio ao Brasil à sua procura. Todos os demais haviam sido gaseificados pelos nazistas.

Eu devia ter uns oito anos de idade quando ela me perguntou pela primeira por que esta desgraça havia acontecido. Eu lhe explicava, usando como argumento a História da ascenção de Hitler ao poder. Eu lia muitos livros sobre a Segunda Guerra Mundial e cada vez minhas respostas ficavam mais elaboradas. Porém, quando acabava de dar minha explicação ela perguntava de novo: mas por que? Prometi a mim mesmo que um dia iria encontrar uma explicação para os fatos e dar a devida resposta a ela. Ela morreu quando eu tinha 14 anos e nunca lhe consegui formular uma resposta que não terminasse com a pergunta dela, “mas por que?”

Nasci em 1954, o mais novo e o único homem entre três filhos. Meu pai era dentista e professor universitário. Minha mãe, dona de casa. Minha irmã do meio nasceu com um problema na vista, que a levou a várias cirurgias e inúmeros exercícios, que tinha que fazer em casa com o auxílio de minha mãe. Meus pais acabaram comprando o serviço de uma jovem negra para cuidar de mim, a Ana. Ela era a pessoa mais próxima de mim quando criança. Começou a namorar o funcionário da Prefeitura que vinha pegar o lixo na porta de nossa casa e eu participava deste namoro indo junto com eles à noite para umas caminhadas na vizinhança. O jovem pretendente vasculhava os lixos que recolhia em busca de selos que trazia para a minha coleção recém iniciada. À noite, quando vinha namorar, eu recebia satisfeito os presentes. Gostava muito do casal.

Um dia eles se casaram e perdi minha principal referência com o mundo externo. Consegui um dia que minha mãe me levasse para visitá-los. Eles já tinham um filho e viviam em um lugar muito pobre em condições muito modestas. Até hoje me lembro deste dia. Como pode a pessoa que me criou não poder oferecer as mesmas condições que eu tive para criar seus próprios filhos? Por que uma jovem tem que vender seus serviços para criar os filhos dos outros?

Entrei na adolescência disposto a encontrar respostas do por que do Holocausto e do por que de tanta desiguladade e diferença de oportunidades na sociedade.

Socialismo

Socialismo

Era 1966 inicio o primeiro ano ginasial no Colégio de Aplicação da Faculdade de Filosofia, Ciëncias e Letras da USP na cidade de São Paulo. Era o laboratório pedagógico e local de estágio de futuros professores de ensino secundário formados pela USP.

Entrei nesta escola depois de um exame de admissão, contra minha vontade, que era permanecer na escola judaica em que fiz o ensino primário. Em nossa casa não seguíamos ritos religiosos. A escola em que eu estava não era religiosa, mas era sionista. Havia um processo de educação para nos preparar para Aliah (emigrar para Israel), e alguns colegas meus de classe desta época fizeram esta opção. Acredito que se meu pai não tivesse me tirado desta escola, eu também teria feito esta opção quando crescesse. Bloqueado o meu futuro sionista, abriu-se a possibilidade de um novo caminho.

Em 1967 surgiu a primeira greve em nossa escola, relacionada a uma briga entre a Faculdade de Educação da USP e a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (o Colégio de Aplicação existe hoje sob o comando da Faculdade de Educação). A Faculdade de Educação destituiu o Diretor de nossa escola, que tinha o apoio dos professores da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Os alunos entraram no meio da briga a favor da permanência do Diretor. A forma de apoio foi uma greve e a ocupação da escola. Me posicionei a favor dos grevistas e participei das assembléias diárias. Para pedir a palavra nestas assembléias pedia-se uma inscrição à mesa. Porém, quando chegava a vez de falar devido ao grande número de inscritos, muitas vezes o assunto já era outro. Me arrisquei: pedi a palavra e tive sorte. O assunto em discussão já havia mudado mas tive a oportunidade de fazer uma leitura com críticas ingênuas sobre um manifesto dos alunos que eram contra a greve, que estava começando a circular, que foi muito ovacionado. Ganhei até um beijo de uma menina do clássico (na época o colegial era dividido em clássico, para os que pretendiam cursar ciências humanas e científico para quem pretendia cursar ciências exatas). Gostei de toda aquela novidade e agitação.

Em 1968 começaram as greves universitárias e as passeatas contra a ditadura. Não participei das passeatas, mas acompanhei tudo “debaixo da escada”. Embaixo da escada tinha o mimeógrafo do Diretório Estudantil, e eu e Almir, o encarregado do jornalzinho do Diretório, íamos trazendo as notícias do movimento para dentro da Escola. O Almir estava no científico e estudava a noite. Eu estudava a tarde e pela manhã fazíamos o jornal sobre a direção dos líderes do Diretório que estudavam no período da manhã.

Neste ano iniciou-se minha politização e aproximação com a literatura de esquerda. Sou convidado para participar de um grupo de estudos de judeus, cuja maioria morava no Bom Retiro e tinha estudado nas Escola Sholem Aleichem. Nesta época a comunidade judaica era dividida em duas: a sionista, que ensinava a seus filhos o hebraico e a internacionalista, que ensinava o idiche. O grupo internacionalista morava no Bom Retiro, mas eram mais pobres, mantinham a escola Sholem Aleichem e o teatro TAIB. O grupo sionista havia se mudado em sua maioria para Higienópolis (o “Melhor Retiro”). Para lazer, o grupo sionista frequentava o clube Hebraica e o internacionalista o clube Macabi. Eu era o mais novo do grupo de estudos. Começamos com “O Papel do Homem na História” de Plekhanov e em seguida o “Manifesto do Partido Comunista” de Marx e Engles. Deste grupo de estudo saíram um playboy, um dirigente de uma organização trotskista e um membro do Partidão, o Partido Comunista Brasileiro.

Em 1969, através do Ato Institucional número 5, o Governo fechou o Congresso, criou a censura a imprensa e intensificou a repressão. Na liderança do movimento estudantil a discussão era a de aderir a luta armada, que havia se iniciado em 1968, ou adotar a resistência pacífica, acreditando na força de greves, passeatas e desobediência civil, para acabar com a ditadura. Eu nunca tive dúvidas de que a luta armada era fazer o jogo do adversário, a ditadura militar, que estava muito mais preparada para o confronto violento. A maioria dos líderes do Colégio de Aplicação aderiram à luta armada, criando um vácuo na direção do Diretório Acadêmico, que foi preenchido por um grupo minoritário, o Partidão. O Almir, encarregado do jornal do Diretório, era do Partidão, e o Partidão era contra a luta armada.

Fui convidado a fazer parte da próxima Diretoria. Chapa única, ganhamos a eleição. O Almir era o Presidente, o João o vice e eu o Secretário. O Almir foi preso em abril por ter impresso um jornal clandestino para uma facção da luta armada. Ele imprimia qualquer coisa, pois este era o trabalho que lhe dava de comer. Acabou indo comer de dentro da prisão por uns seis meses. O João assume então a Presidência, mas renuncia em julho, pois tinha que estudar para passar no exame de vestibular. Eu, com 14 anos, na quarta série ginasial, assumi a Presidência do Diretório em julho de 1969. Foi também o começo das minhas atividades clandestinas: distribuir o jornal Resistência em minha escola. A publicação mensal era produzida no Rio de Janeiro, à partir de matérias censuradas na imprensa, por um grupo que mais tarde aderiu à luta armada.

A repressão na Universidade resolveu acabar com o nosso Colégio em 1970. Permaneceu somente como escola primária, que na época estava sobre o comando da Faculdade de Educação. O ginásio e o colégio entraram na rede estadual, com a designação de Colégio Estadual Fidelino de Figueiredo. Nossa tarefa no Diretório era resisitr a este desmantelamento, mantendo atividades como teatro, música, fotografia que deixaram de ser oferecidas pela escola. Outra tarefa era manter as carteirinhas estudantis com idades falsificadas para permitir a entrada do pessoal do colégio e do ginásio em filmes proibidos, num drible contra a censura desatinada. Através das ações do Diretório fiz novas amizades, para as quais passei a ser uma referência em política. Apareceu também um jovem do terceiro colegial, mais velho, que desafiava minha posição de liderança no Diretório. Em julho de 1970, antes de terminar meu mandato, renunciei à Presidência. Este colega passou a ser o Presidente interino até as eleições seguintes, me permitindo dedicar ao que eu achava prioritário naquele momento: trabalhar com o grupo de teatro, e criar um grupo de estudos com mais cinco colegas para estudar marxismo.

Enquanto era Presidente, mantinha ligações com dois partidos: a Polop e o PCB. Enquanto a pessoa da Polop queria vender suas idéias como as únicas verdadeiras do mundo, o contato que tinha com o Partidão era de uma pessoa muito mais madura que estava mais preocupado em abrir minha cabeça que me doutrinar. Através dele recebia a imprensa de vários grupos clandestinos e ele tinha uma visão de que nossa principal missão como garotos de classe média era a de estudar para sermos bons profissionais a serviço da classe operária. Quem iria derrubar a ditadura militar eram os operários e não um bando de estudantes ou guerrilheiros. E eu ouvia isto de um homem mulato, alto, magro e nordestino. Era o José Montenegro de Lima que foi preso em 1975, torturado e assassinado no DOI-CODI, centro de tortura do Exército, e seu corpo nunca recuperado pela família.

Minha admissão no Partidão passava por fazer um curso: ABC do PCB. Tínhamos que ler e discutir uma cartilha que tinha a linha programática do Partido. Fiz este curso na casa do Almir e a Professora era a filha do Prestes e da Olga Benário, como vim a saber anos mais tarde. A idéia de montar o grupo de estudo de marxismo com meus amigos visava a reproduzir as aulas que estava tendo neste curso. Nosso grupo era muito bom, e sempre fomos críticos de tudo. Eu mesmo nunca engoli a revolução em duas etapas: a nacional-democrática e a socialista depois. Esta era uma crítica da Polop ao Partidão que sempre concordei. Um dos membros do nosso grupo, o Clovis Goldemberg, quando discutíamos o livro “Salário, Preço e Lucro” de Marx, apresentou a tese que Marx “havia cagado” pois a história havia demonstrado que ele estava errado quanto ao prognóstico que ele tinha para a pequena burguesia. Depois de muita discussão ele nos convenceu que Marx “cagou”. Com espírito aberto e compromisso de luta pacifica contra a ditadura, nos filiamos todos ao Partidão em meados de 1971.

Nosso grupo só parou de se reunir em 1972, quando fomos todos estudar para passar no exame de vestibular. Esta era a nossa tarefa. Nesta época, conheci outros membros do Partidão, entre eles um velho dirigente que me pediu para ajudá-lo a escrever uma carta de protesto, pelo fato da Prefeitura ter decidido colocar grades nos principais parques infantis da cidade. Ignorando o início do descontrole da violência urbana, ele argumentava sobre o que seria das crianças se nascessem tendo que brincar já cercadas. Era este tipo de gente que eu ia conhecendo, enquanto os jovens que aderiram a luta armada morriam baleados no confronto com a ditadura ou em seus porões, após serem torturados.

Em 1972 participamos da primeira grande iniciativa que envolvia as células do Partidão do Movimento Secundarista e Universitário. Era organizar a comemoração dos 50 anos da Semana de Arte Moderna, como um marco de resistência cultural. Entre outras coisas, discutíamos como revigorar o chorinho e a música Latina-americana no meio estudantil.

Em 1973 entrei na Faculdade de Medicina da USP. Já havia uma militante por lá, e juntos começamos a organizar o Partido na Faculdade e a encontrar uma alternativa para o Centro Acadêmico. Cometemos algums erros, mas em 1975 a chapa que organizamos e apoiamos ganhou a eleição para o Centro Acadêmico. Naquele ano, a influência do Partidão no conjunto dos Centros Acadêmicos seria muito grande, não fossem as prisões efetuadas de setembro a outubro.

Em 1974, a direção do último grupo a favor da luta armada foi dizimada: caiu parte da direção do PC do B e a guerrilha rural do Araguaia foi desbaratada antes mesmo de começar. A repressão se volta contra o Partidão. Apesar de não ter aderido à luta armada, o Partidão representava o inimigo na Guerra Fria, a “embaixada” de Moscou no Brasil. A repressão não teve dificuldades para acabar com o Partidão. Muitos de seus dirigentes tinham uma vida apenas semi-clandestina. Pegaram um deles, torturaram sua mulher e filha na frente dele e ele passou a ser um “cachorro”, um informante em troca de segurança para si e sua família. A queda começa pela gráfica, o coração de uma organização clandestina pacífica, e segue na direção da cabeça, o Comitê Central. Provavelmente, através de informação de pessoas infiltradas no exterior, o exército consegue pegar na fronteira os dirigentes que estavam voltando para o Brasil e os assassinam. A seguir começam a desmembrar o corpo de cima para baixo. Dirigentes torturados vão entregando os militantes para os quais eles davam assistência, ou seja, orientação para a ação política.

Nos fins de 1974 termina a aventura do meu primeiro amor e fico com a impressão que o mundo acabou. Meu Pai me vendo tão triste resolveu me dar um prêmio para me animar: “uma viagem para Londres para você aprender inglês.”. Comprou uma passagem, me levou até o aereoporto e disse: “em caso de emergência ligue para a Embaixada do Brasil na Inglaterra. Aqui está o telefone.” No avião encontrei outros jovens que também estavam indo para Londres estudar inglês nas férias, só que eles estavam em um grupo com tudo definido. Quando descemos no aereoporto e eles foram embora, fiquei sozinho sem saber aonde ir. Já me vi em emergência e liguei do saguão do aereoporto, em um telefone público, para a Embaixada do Brasil. Me pediram para ir para lá e fui muito bem recebido. Havia uma Casa da Cultura do Brasil e neste lugar havia acomodação para estudantes de pós-graduação. Porém, nas férias alguns tinham retornado ao Brasil. Me arrumaram um quarto que dividi com o neto de um Ministro, que não era estudante de pós-graduação, até eu arrumar um novo lugar.

Fiquei fascinado por Londres, assisti a vários filmes que estavam proibidos no Brasil e me inscrevi em um curso de inglês, do sistema público, para estrangeiros a noite. Na segunda semana de aula sentei finalmente para fazer as lições da escola que já estavam se acumulando. Olhei para a janela e me perguntei: “o que estou fazendo aqui na porta da Europa, fechado em um quarto, fazendo lição de casa?” Fechei os cadernos, me despedi do pessoal da Casa da Cultura e peguei o trem para Paris (na época não havia aindo o túnel, e atravessei o Canal da Mancha de barco).

Em Paris sabia que um Professor e amigo, Carlos Corbett, estava com a esposa em mais uma lua de mel do casal. Apareço de repente no hotel em que estavam, me lembro que ele abriu espantado a porta do quarto dele e eles ainda estavam na cama. Só faltou eu deitar na cama no meio deles! Era o próprio aluno chato perseguindo o Professor até Paris! Me acomodei no mesmo hotel e procurei me virar sozinho. Porém, não falava francês. Isto foi virando um problema e o solucionei comprando uma passagem para Lisboa.

Em Lisboa, fui para a casa do Miguel Urbano Rodrigues, comunista português, pai de um amigo meu do Partidão. Quando ele estava no Brasil, na condição de exilado, Miguel era jornalista da Revista Visão. Com a Revolução dos Cravos em 1974 em Portugal, os exilados políticos voltaram e Miguel se tornou editor chefe de um jornal de esquerda em Lisboa. Através de sua orientação, consegui uma acomodação na Residência dos Estudantes da Universidade de Lisboa.

O grupo político dominante na Residência era um grupo maoista cuja sigla era MRPP. O Partidão de lá os chamavam de MR Pum Pum acentuando o caráter de esquerda festiva que era como os caracterizavam. Tinha alguns estudantes do Partidão de lá, o PCP, na Residência, mas eram discretos naquele ambiente. Era janeiro de 1975, governo Vasco Gonçalves, e havia muita agitação. Ambiente perfeito para mim. Frequentei assembléias de condutores de ônibus (que estavam em greve) e de estudantes. As assembléias dos estudantes eram diárias e começava com a votação da agenda: votavam se iam ou não discutir certos ítens. A discussão sobre o que iam discutir levava horas.

De noite ia para a casa do Miguel Urbano. Cheguei até a dar um palpíte sobre um título para uma matéria que ele tinha escrito e que ele acatou. A casa dele vivia cheia de gente e de discussões. Frequentava estas conversas um jovem jornalista barbudo brasileiro, desconhecido na época: o Fernando de Moraes, que viria a ser futuro deputado, escritor consagrado, e Secretário de Educação do Estado em São Paulo. Saimos juntos por uma noite e ele me contou que estava de passagem para Lisboa para ir a Cuba via Madri escrever uma reportagem do que viria a ser o livro, campeão de vendas, “A Ilha”. Perguntou se eu queria ir com ele (ou eu perguntei se poderia ir com ele), mas que para isto eu precisava mandar meu passaporte para a Embaixada da Espanha para conseguir um visto especial já que era proibido para brasileiros ir a Cuba. Iria infligir uma lei brasileira. Como era militante, fiquei com medo que caso descoberto a minha presença em Cuba, de ser preso na minha volta ao Brasil. Ele tinha o respaldo da Revista em que trabalhava. Perdi a oportunidade de participar desta aventura e conhecer melhor o Fernando de Moraes.

Dois meses depois, volto ao Brasil e meu Pai me pergunta em inglês como tinha sido meus estudos em Londres. Eu repondo em sotaque de Portugal: “sabe pá, a bicha era comprida, eu não aguentei esperar e fui pra Purtugal.”

No Brasil, enquanto as organizações da luta armada aprendiam que deveriam resistir à tortura, nós aprendemos que a melhor defesa era nossa inserção no movimento de massas. Quando a repressão nos atingisse, a sociedade teria que sentir que perdeu uma parte de seu corpo e deveria reagir contra esta perda. Foi o que aconteceu em outubro de 1975. A repressão não estava preparada para as prisões em massa que realizaram. De repente eles tinham mais nomes para prender que pessoas para irem prendê-las. Prenderam pessoas sem importância na organização permitindo que dirigentes escapassem. Tiveram que abrir delegacias de polícia antes de estarem prontas para acomodar tantos presos. Mataram alguns em “acidentes de trabalho” na tortura. De um tenente da polícia militar, poucos ficaram sabendo, mas quando mataram Herzog, jornalista judeu, editor do jornal da TV Cultura que pertence ao Estado, ex-radialista da BBC de Londres, a sociedade reagiu.

Reagindo à morte de Herzog, a Universidade entrou em greve geral e a Igreja tomou a iniciativa de realizar uma missa ecumênica na Sé, que contou com a presença de 8 mil pessoas. Dois anos antes, Alexandre Vannuchi, um estudante de geologia e da Direção de seu Centro Acadêmico, morreu após tortura. Não era o primeiro, mas nós universitários do Partidão, em conjunto com a Igreja Católica, organizamos uma missa ecumênica na Catedral da Sé. Esta mesma ação política da Igreja foi aplicada para nos ajudar em 1975.

O Presidente Geisel veio a São Paulo e ameaçou o Comandante do II Exército com a demissão, caso houvesse um próximo cadáver. Cinco meses depois, um novo cadáver, foi morto o operário Manoel Fiel Filho. O Comandante é destituído e iniciou-se uma crise militar que culminou com a demissão do Ministro do Exército e a vitória, entre os militares, da linha a favor do fim da ditadura. Em 1976, Figueiredo é indicado presidente do Brasil, como o último militar do ciclo da ditadura e jura “fazer deste País uma Democracia. E eu prendo e arrebento quem for contra.”

Eu estava no DOI-CODI quando Herzog morreu. Em 1975, antes da entrada de Figueiredo no Governo, enquanto estava no terceiro ano da Faculdade, mais pessoas próximas de mim estavam sendo presas a cada dia. Nós, universitários do Partidão em São Paulo, sabíamos que poderíamos ser os próximos. Nosso assistente para a Universidade teve a idéia de lançar uma chapa para representantes dos alunos no Conselho Universitário, e eu foi um deles. Fizemos muita propaganda e percorri várias classes em diferentes Faculdades. Este é um exemplo de como reagimos à onda de prisões. Antes das eleições do Conselho Umiversitário acabei sendo preso.

Soube que seria a minha vez, quando foi preso um colega de Faculdade, o Ubiratan de Paula Santos, o qual eu tinha introduzido ao Partidão. Me encontrei com um amigo da época do Colégio de Aplicação que estudava na Politécnica, o Allen Habert, e ele também sabia de outras prisões de companheiros. Ficou claro que todos os nomes do Comitê Universitário estavam abertos. Ele foi acampar e apareceu um ano depois. Na época, meu pai era o Diretor da Faculdade de Odontologia da USP, e me sugeriu a seguinte estratégia: eu iria me entragar ao DOI-CODI, mas com estilo: chegaria de carro oficial, com o Reitor da Universidade, para uma audiência com o comandante do II Exército. Meu pai julgava que, nestas circunstâncias, iriam me soltar logo. Eu achei uma ótima oportunidade de envolver o Reitor na defesa de todos os estudantes e professores presos. E assim foi feito. Fui preso na sala do Comandante. Saí de lá escoltado, me puseram no banco de traz no carro da Polícia, deitado no chão, os pés dos soldados em cima de mim.

A tortura tem três fases: a psicológica, a física e a colaborativa. Na fase “psicológica” te colocam um capuz preto para você não enchergar nada e perder o senso de direção e localização. Ou te deixam nu ou te colocam um macacão. Nunca se dirigem a você pelo seu nome e de vez em quando te chingam, te empurram ou dão uma palmatória. É comum ficar em um lugar onde se escutam os gritos dos que estão sendo torturados. Te deixam assim uns dois dias, sem comer. Ao pedir água ou ir ao banheiro te atendem mas sempre chingando e empurrando. Depois de uns dois ou três dias começa o interrogatório e a fase “física”. Na fase “física” te tiram o capuz e te colocam em um quarto sem janelas com os devidos aparelhos de tortura que é a “pimentinha” (uma máquina de choque elétrico que amplia a voltagem conforme a rotação da manivela) e um tanque com água para as sessões de afogamento. Há também a “cadeira do dragão”, que não fui apresentado, mas me relataram ser uma máquina de choque elétrico, onde o indivíduo fica amarrado na cadeira. E também tinha o pau de arara, um cabo de vassoura sustentado por cavaletes, onde te dependuram pelos joelhos, com os punhados amarrados por trás, e a cabeça pendente e a bunda exposta para facilitar o trabalho dos torturadores. No meu caso, o interragatório foi simples. Me fizeram perguntas, me deram uns tapas nos ouvidos, e viram que eu não estava colaborando e estava muito tranquilo. Me colocaram em uma solitária por alguns dias. No próximo interragatório eu tive companhia. Trouxeram o Dirigente do Comitê Universitário do Partido, que foi me orientando a dizer tudo, não bancar o besta e assinar os papéis que eles quizessem, pois já haviam machucado gente demais. Falei então o que eles queriam ouvir, consegui esconder uma base que eles não sabiam da existência e que eu dava assistência e passei para a fase seguinte.

Enquanto esperava ir para a fase seguinte o “omelete foi feito” como disse um dos policiais torturadores. Herzog tinha morrido nos primeiros choques e tudo mudou deste dia em diante. Fui ainda interrogado no dia seguinte, por um oficial à paisana que, numa conversa tipo pai para filho me aconselhou a me afastar destes comunistas, que eles (os militares) já tinham matado todos os dirigentes e que “ontem matamos um aqui dentro”. Fiz a papelada da fase “colaborativa”, que nada mais é do que escrever a confissão. A seguir fui encaminhado para o DOPS, a delegacia de presos políticos, onde fui preso legalmente pois até então estava “desaparecido”.

Os planos de meu pai não eram esses. Achava que eu iria sair logo. Com o assassinato de Vladimir Herzog, também professor da USP, preso após ter se apresentado espontaneamente ao Exército, meu pai acabou inventando um plano para tentar me tirar da prisão. Pediu a interdição de um conhecido do meu cunhado que fazia parte de um grupo de segurança da coletividade judaica em São Paulo. Este acertou com os militares a minha libertação e não ida a julgamento, desde que eu servisse como testemunha de acusação contra um dos meus companheiros, o Sergio Gomes. Colocaram minha mãe e minha irmã para me fazerem a proposta. Quando entendi do que se tratava, olhei para minha irmã e disse que me chocava muito vê-la participando desta proposta. Ela caiu em si e puxou minha mãe para fora da sala. Eu ainda tive que ouvir umas babaquices dos policiais envolvidos na negociação, de que eu era comunista mesmo, e voltei para a cela, orgulhoso mas chorando. Na primeira visita que meu pai me fez na cadeia, ele me pediu desculpas por ter agido daquela forma e que eu tinha feito muito bem de não ter aceitado aquela negociação. Foi a única vez que eu vi meu pai pedir desculpas por algo que ele fêz.

Para mim, o resto da prisão foi uma bela escola de comunismo. Vivíamos 45 pessoas divididas em cinco celas. Havia uma dispensa coletiva, uma escola para o ensino supletivo, uma oficina para realizar artesanato em couro - para arrecadar fundos para aqueles que tinham que continuar a sustentar suas famílias, o jornal oral “O Parcial” e muita conversa paralela. Eu dormia no teto de uma cama beliche a uns 50 cm do telhado. Este “filhinho de papai” conheceu dirigentes operários, líderes de organizações de camponeses, ex-deputados, ex-vereadores, enfim, um mundo que antes desconhecia e que só pertencia ao meu imaginário. Um dos presos era o José Ferreira da Silva, o Frei Chico, irmão do Lula, e numa visita de fim de semana dos parentes é que tive meu primeiro contato com quem viria a ser o Presidente do Brasil.

Em fins de 1975 sai da prisão meio perturbado. Me sentia mais seguro e feliz lá dentro do que fora. As feras estavam soltas e os homens estavam presos. A vida tomou rumos estranhos, e meus pais resolveram controlar minha vida. A mulher que eu gostava era uma colega do Partido, que fugiu para o exterior, e eu só fui vê-la novamente 5 anos depois, com a Anistia aos presos políticos promulgada pelo Governo em 1980. Em 1976, entrei em depressão e quase que perco o ano na Faculdade. Prometi ao professor que, se me desse a chance de seguir adiante, iria fazer saúde pública, sem arriscar a vida de nenhum paciente. Passei de ano e fui fazer saúde pública como especialização.

A prisão provocou alguns efeitos inesperados. Fui procurado pelo Presidente da Associação de Servidores do Hospital das Clínicas, o HC, que se apresentou como um comunista perdido, e que estava feliz de saber que havia estudantes do Partidão tão perto. Escrevemos uma longa entrevista com ele, que foi publicada no jornal do Centro Acadêmico e distribuída para todos os servidores do HC. A Associação não tinha um jornal próprio. Em 1976 este dirigente organizou a primeira greve de funcionários públicos desde 1969 reivindicando aumento salarial. A greve foi massiva, muito bem organizada, vitoriosa e aquela entrevista foi o início do processo.

A Classe Operária

A classe operária

Em 1974, conheci o David Capistrano Filho, na época, um estudante de pós-graduação na Medicina Preventiva. Sabia que ele era do Partidão e sua busca pelo pai, que estava “desaparecido” após ter sido preso na fronteira do País, nos aproximou muito. Em 1978, como dirigente do PCB, ele me pediu para ajudá-lo na reconstrução do Partidão na região operária do ABC. Na região, só tínhamos conhecimento das pessoas presas pela ditadura: uma base da Volks, cujos integrantes haviam sido todos presos em 1972, e alguns dos meus contemporâneos de prisão. Um outro ponto para iniciar era a Associação dos Metalúrgicos Aposentados de Santo André, onde não ocorreram prisões. Comecei a visitá-los, um a um, a partir dos já conhecidos. Em 1980 já tínhamos bases nas principais cidades da Região, mas sem grandes lideranças, com exceção de São Caetano.

Em 1979, finalizada a graduação, casei e fui prestar serviço militar como médico. Um erro deu a pista de que eu ainda estava em atividade política para os órgãos de segurança. Fui expulso e fiquei desempregado da noite para o dia, com minha esposa na primeira gravidez (ela acabou perdendo esta gravidez por aborto espontâneo a seguir à minha expulsão), e com uma dívida que contava pagar com meu salário de oficial militar médico. Ao saber desta história, em um ato de solidariedade, um colega médico do Partidão me ofereceu seu emprego no Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André. Foi a primeira vez que eu encontrei o Gastão Wagner Campos, futuro Secretário Executivo do Ministério da Saúde.

Em 1980 mudei para São Caetano do Sul. Trabalhava pela manhã no Centro de Saúde de São Bernardo no Programa de Hanseníase e a tarde no Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André como Clínico Geral.

Me especializei em medicina do trabalho e era programa do Partidão introduzir a medicina do trabalho em Sindicatos. A medicina do trabalho em Sindicatos ajuda a organização do Sindicato pelas bases, pois cada local de trabalho tem um risco específico. Estabelece a possibilidade de reivindicações ao longo de todo o ano, ao contrário das reivindicações salariais que acontecem somente uma vez ao ano. Amplia a consciência sanitária dos trabalhadores, principalmente daqueles que passam a monitorar as condições de trabalho pelo programa de medicina do trabalho do Sindicato.

O primeiro Sindicato ao qual fomos (David Capistrano e mais uns quatro companheiros da medicina do trabalho) expor esta idéia, foi o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, presidido por Lula. Ele e seus colegas de Diretoria ouviram mas não aprovaram a idéia (não queriam a nossa presença dentro do sindicato). Aproveitei uma mudança de Diretoria no Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André e fiz esta proposta. Para minha surpresa aceitaram sem hesitação. No quarto dia que exercia a função de Médico do Trabalho do Sindicato, lançei o programa através de uma panfletagem na porta das principais fábricas e apareceu minha foto vestido de branco na porta de uma fábrica na primeira página do jornal de maior circulação da região, Diário do Grande ABC. Na tarde deste mesmo dia, a Polícia Federal ligou para o Sindicato que me despediu logo a seguir.

Por quatro dias fui o primeiro Médico de Trabalho de Sindicato do Brasil. A seguir o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo adotou este programa. Mais tarde, o Sindicato dos Metalúrgicos de Guarulhos me chamou para implantar este programa. Um ano depois, o Sindicato do Lula adotou este programa também. Infelizmente, após a democratização, a medicina do trabalho em Sindicatos foi minguando e não tenho mais notícias desta atividade em qualquer Sindicato.

Em São Caetano, passei a ser o chofer do líder da oposição sindical, aquele que iria ganhar a próxima eleição do Sindicato, o Frei Chico. Através dele e de seu grupo passei a viver o nascimento do movimento operário no ABC.

A primeira greve dos metalúrgicos foi em 1979 sob a liderança de Lula. Após 1964 todos os Sindicatos sofreram intervenções e seus dirigentes foram indicados pelas empresas e tinham a aprovação dos órgãos de segurança. Sao Bernardo não era exceção. Quando Lula virou dirigente sindical pela primeira vez, o Presidente de sua chapa era um destes dirigentes indicados, que eram chamados de “pelegos” pela esquerda. A partir desta composição ele se candidata a presidente do sindicato em substituição a este dirigente pelego. Em 1978 surge a Revista Isto É, sobre a direção de Mino Carta, que tem acesso a informações censuradas e privilegiadas devido a suas ligações com o General Golbery, mentor da transição da ditadura rumo a democracia por dentro do regime. Esta revista se torna a mais lida pelo mundo político. Em 1979, quando Lula já é Presidente do Sindicato, a primeira greve por aumento salarial é lançada, dura pouco e é vitoriosa. Lula vira capa da revista “Isto É” e é lançado por esta revista como líder do novo sindicalismo e do movimento operário. O aumento de 8% no salário foi repassado aos consumidores logo a seguir. Tínhamos poucas pessoas em São Bernardo mas um companheiro da fábrica Voigt, nos contou que a greve nesta empresa foi organizada de cima para baixo. Os supervisores foram ao chão da fábrica tirar os trabalhadores de seus postos de trabalho pois eles deveriam estar em greve de acordo com o Sindicato.

O Partidão tinha um “quadro”, um militante especial, no movimento metalúrgico que trabalhava em São Paulo. O Newton Candido conseguiu ser transferido para São Bernardo. Na sua primeira intervenção em uma Assembléia do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, rachou a votação contra uma proposta do Lula. No dia seguinte a Polícia Federal esteve na fábrica e ele foi removido de volta para São Paulo.

Para nós tudo era muito confuso. De um lado havia uma orquestração de lançar um sindicalismo a partir do ABC de tipo social-democrata para substituir o vácuo que os comunistas ocupavam no movimento sindical antes de 1964. Por outro lado o movimento grevista era genuíno e de massa. Na campanha salarial de 1980 os comunistas do ABC participaram ativamente, e apoiaram o prolongamento da greve após a prisão de Lula.

Chegou o dia para a eleição no Sindicato dos Metalúrgicos de São Caetano. Nossa chapa encabeçada pelo Frei Chico, irmão de Lula, líder da greve em São Caetano tinha uns 90% de apoio do eleitorado conforme nossas previsões. Eu estava na porta do sindicato na noite após as eleições quando chegaram carros com gente desconhecida (provavelmente a Polícia) e trocaram as urnas na nossa cara. No dia seguinte o pelego continuou no Sindicato depois de uma vitória de 90% dos votos contra a chapa do Frei Chico. No meio do bate boca que se seguiu um deles gritou: “lugar do Partidão é em São Paulo, aqui no ABC vocês não entram.” Todos os integrantes da chapa nunca mais conseguiram emprego em São Caetano, inclusive o Frei Chico.

A primeira assembléia cuja pauta era a formação do PT no ABC ocorreu em Santo André que estava com a direção de um dirigente pelego, ainda da época da intervenção nos Sindicatos. São Bernardo apoiou oficialmente a proposta meses depois. Neste ínterim fui enviado em nome de Alberto Goldman, na época Secretário Executivo do PMDB, para falar com Lula sobre a possibilidade dele criar e dirigir o Departamento Trabalhista do PMDB. Levava comigo 1.500 fichas de filiação. A política do Partidão ainda era a do fortalecimento da frente anti-ditadura até as primeiras eleições diretas a Presidente, ocasião em que lançou candidato próprio (Roberto Freire). Pedi a Lula uma conversa a sós. Ele me atendeu e após explicar do que se tratava, ele abriu a porta da sala em que estávamos, chamou todos os demais membros da Diretoria, expôs o que se tratava, e daí em diante foi só gozação em cima da proposta e em cima de mim. Ali, ficou claro para mim, que o Sinticato do Lula nao queria ser manobra de um sistema político já estabelecido, e que já estavam comprometidos com um projeto político próprio. Saí de lá sem saber se fui eu que joguei as fichas de filiação no lixo ou se foi o Lula logo depois.

O PT concorreu às eleições de 1982 com Lula candidato a Governador. O Partidão apoiou Franco Montoro, mas no ABC apoiou Lula. Apesar de ser a política do Partidão apoiar candidatos da frente democrática, não podíamos nos descolar do movimento real que estava acontecendo no ABC (a construção do PT).

A vitória de Franco Montoro abriu muitas possibilidades para membros do Partido ocuparem cargos de direção na máquina do Governo. Muitos que optaram por estes cargos nunca mais voltaram à militância política. Aconteceu nesta época o mesmo que aconteceu com a vitória do PT em 2002. Muitos jovens chegando ao poder, substituindo antigos funcionarios, mas sem saber o que fazer para mudar o status quo (além de um monte de reuniões de planejamento).

Em 1983 já estou de volta em Sao Paulo, e tenho a oportunidade de trabalhar como professor universitário. A anistia política trouxe de volta antigos dirigentes do Partido, entre eles o velho Prestes. A entrada das idéias contrárias à democracia, “coisa de burgueses”, culminou com uma luta interna e conseguiu o que nem a Ditadura conseguiu, a destruição do pouco que havíamos organizado. O grupo de militantes sob a liderança de David Capistrano adota a medida de se diluir dentro do PT, sem manutenção de identidade de facção. Eu aproveito minha ida para a Universidade e adoto o “Partido Universitário” como meu novo partido, ou seja, um professor universitário deve ser militante da ciência e lançar sempre perguntas aos alunos, diferente do que fazem os Partidos que disputam o poder, que vendem soluções prontas ao público.