Wednesday, July 17, 2013

A Atenção Básica Que Deu Certo

A Estratégia da Saúde da Família (ESF) do Brasil, anteriormente denominado de Programa Saúde da Família, foi considerada pelo editorial do British Medical Journal de novembro de 2010 um exemplo a ser seguida por todos os países como modelo de atenção primária a saúde. A significância deste comentário é que a revista é de alto prestígio e a Inglaterra é tradicionalmente um ponto e referência para atenção básica no mundo. No Município de São Paulo, segundo dados do Ministério da Saúde, 35% da população tem cobertura pela ESF.  A ESF é uma das portas de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS).

A ESF é composta de seis pilares: a Medicina de Família, o Agente Comunitário de Saúde, o Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF), a equipe de Saúde Bucal (ESB), o Conselho Gestor e o território de abrangência. A Medicina de Família é uma especialidade clínica que envolve ações de médicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem. É uma especialidade mais complexa que as demais especialidades clínicas, pois o campo de conhecimento é maior do que qualquer outra especialidade clínica já que envolve pessoas e não doenças, pessoas que tem várias doenças crônicas ao mesmo tempo. Disto isto não há Medico de Família ou Enfermeira de Família em nenhum lugar do mundo completamente formado. Sempre será um processo em formação (daí a importância destes profissionais estarem envolvidos em educação continuada como parte de seu horário de trabalho). O importante é incorporar novos instrumentos como o desenho da constelação familiar ou genograma. Estes instrumentos permitem entender a pessoa doente dentro de seu contexto familiar tanto para identificar pontos de agravamento como pontos de resiliência. Outro instrumento é a demora permitida, a possibilidade de realizar o diagnóstico através de várias observações para averiguar o progresso da doença via retornos em curto espaço de tempo ou visitas domiciliares. Daí a importância da Medicina de Família ser exercida perto da casa das pessoas, com possibilidade de acesso a pé por parte dos usuários à unidade de saúde e acesso a pé por parte dos profissionais de saúde à casa dos usuários. O conhecimento do contexto familiar, da demora permitida, aliada a uma recuperação da boa anamnese (história da doença) e exame físico fazem da Medicina de Família, além de uma medicina de qualidade para o usuário, uma medicina sustentável economicamente em contraponto a medicina com base no uso abusivo de tecnologia diagnóstica que acaba confundindo achados de variabilidade biológica (achados casuais) com achados que deveriam ser causais.

O outro pilar são os Agentes Comunitários de Saúde (ACS). Cada equipe de um médico, um enfermeiro e dois auxiliares de enfermagem trabalham com 800 a 1000 famílias cadastradas no programa que moram em uma área contínua. Esta área é dividida em seis micro-áreas cada uma com 140 a 180 famílias. Cada micro-área tem um agente comunitário que mora na área de abrangência da unidade de saúde (o território da unidade). O agente comunitário deve promover a saúde no território de abrangência da equipe. Seus instrumentos de trabalho são as visitas domiciliares, as inspeções domiciliares em busca de criadores de vetores, grupos de teatro para ações educativas e auxiliares na coordenação do cuidado do paciente junto à família. As atividades de educação coletiva são fundamentais para a prevenção das epidemias como a dengue, a AIDS, o H1N1, a conjuntivite e a obesidade, cuja prevenção envolve mudanças de hábitos na população. Para os acamados as visitas de rotinas dos ACSs trazem o processo de gerenciamento do cuidado de seus tratamentos para dentro de suas casas.        

Estes agentes não estão prontos quando entram no programa. O processo de educação continuada e educação permanente em serviço são fundamentais. Para muitos é o primeiro emprego e eles crescem e saem em busca de melhor oportunidade de trabalho. Esta preparação de mão de obra ao mercado de trabalho é uma das funções sociais da ESF. Por sua vez, outros não conseguem mais sobreviver no mercado de trabalho ou nunca conseguiram entrar. Para estes, a existência de um emprego próximo de suas casas, compatível com suas rotinas familiares, são uma solução para a recuperação ou incremento de suas dignidades.

O Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF) é um dos conceitos mais avançados da ESF e um dos últimos componentes que foram agregados a esta estratégia. Pela orientação atual do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde cada 9 equipes de Saúde da Família deve ter um NASF. Na nossa região, cada NASF tem 10 profissionais de saúde distribuídos em três áreas de conhecimento: área reabilitação: um fisioterapeuta, um fonoaudiólogo e um terapeuta ocupacional; área promoção da saúde: um assistente social, um psicólogo, um nutricionista e um educador físico; área clínica: um ginecologista, um pediatra e um psiquiatra. O território de um NASF pode ser igual ao da unidade básica de saúde (para unidades com 9 ou mais equipes) ou maior para unidades menores. Por exemplo, um conjunto de unidades de saúde com 3 equipes cada por exemplo, terão um NASF para estas três unidades. O NASF não é um ambulatório de referência para os profissionais de saúde das equipes. É uma equipe que visa a compartilhar conhecimentos para um projeto terapêutico de um doente que envolve a presença de vários profissionais para seu maior êxito. A operacionalização deste conceito é a seguinte: cada equipe tem uma reunião semanal ou diária para fazer a gestão do cuidado de seus doentes. Nestas reuniões se definem aqueles que 1) precisam de visitas domiciliares de cada profissional da equipe; 2) aqueles que precisam de consultas compartilhadas entre membros da equipe e profissional do NASF, ou 3) aqueles que precisam avaliações individualizadas por profissionais do NASF que a seguir encaminham os pacientes para seguimento pela equipe com sua avaliação devidamente anotada em prontuário. Para casos mais graves os profissionais do NASF fazem um acompanhamento por maior período de tempo do paciente antes de retorná-lo a equipe. Para ser viável esta integração entre diferentes profissionais e a atuação destes especialistas perto da casa dos usuários, é importante que haja espaço físico nas unidades para os profissionais do NASF trabalharem e espaço nas agendas para que profissionais do NASF possam participar de reuniões das equipes para a elaboração do projeto terapêutico de um determinado doente.

Outra atuação do NASF é sua participação na promoção da saúde no território. Cada unidade de saúde tem um conjunto de ações coletivas no território visando à promoção da saúde. A presença destes profissionais nestas ações ajuda a qualificá-las. Exemplos destas ações: caminhadas com a presença dos professores de educação física, cozinhas comunitárias com a presença do nutricionista, grupos de saúde mental com a presença do psicólogo, grupos de dor com a presença do fisioterapeuta, ações com as crianças e adolescentes fora e dentro das escolas envolvendo vários profissionais, entre outros.      

No aspecto clínico, as consultas compartilhadas entre médicos de família e os especialistas permite um crescimento técnico cada vez maior o que aumentará a resolutividade destes profissionais (a capacidade resolverem um caso sozinho). Teoricamente para profissionais que estiverem com bom domínio de casos de atenção básica nas áreas de psiquiatria, pediatria e ginecologia (ou que fizeram residência em Medicina de Família), nada impede que outras especialidades estejam disponíveis para consultas compartilhadas com os médicos de família. Sabemos de experiência semelhante envolvendo médicos de família com dermatologistas e cardiologistas em outros países.        

Mais um pilar importante da ESF: a equipe de saúde bucal. Há duas modalidades de equipes de saúde bucal: uma com dentista e auxiliar, outra com dentista, auxiliar e higienista (técnico). Nossa experiência é a de que deve haver um máximo de três equipes de saúde da família para cada equipe de saúde bucal e que cada unidade com duas ou mais equipes de saúde bucal deve ter no mínimo uma delas completa com a higienista. A demanda por uma dentição saudável é grande. Ninguém quer perder sua dentição afetando seu sorriso, sua auto-estima e sua capacidade mastigatória, além do fato da necessidade de eliminar a forte dor por ocasião de infecções dentais não tratadas. Enquanto o tratamento clínico dificilmente é definitivo, o tratamento dental é algo mais palpável e duradouro. Tratar dos dentes amplia o vínculo entre usuários e unidades de saúde que tem implicações em todas as demais atividades de saúde. Há também o potencial da ESB participar de atividades de promoção da saúde da unidade. Por exemplo, quando vão às escolas, integrar ações de educação para a escovação com a lavagem de mãos para prevenir infecções respiratórias. Nos consultórios, integrar o tratamento de cáries dentais com a prevenção da obesidade.

A ESF tem um importante papel na construção da Democracia também. Os Conselhos Gestores de cada unidade são compostos de 50% de usuários eleitos entre seus pares, 25% de representantes dos trabalhadores eleitos entre seus pares e 25% representantes dos gestores da unidade. Os Conselhos Gestores têm o potencial de ter uma visão de futuro da saúde e qualidade de vida do território, trazem casos onde ocorreram falhas no processo de atendimento que ajudam a corrigir as ações de serviço e ajudam a envolver a comunidade em ações de promoção da saúde. Aos gerentes de unidades cabem organizar as reuniões destes Conselhos para ampliar a participação para donas de casa, estudantes e aposentados que vivem no território da unidade.       

Por fim o pilar do território de abrangência. Território é o espaço onde todas as equipes de saúde da família e de saúde bucal estão constituídas sob um único comando gerencial e uma estrutura física de referência. O território não é composto somente de pessoas, mas também de espaços que devem ser mantidos saudáveis. O Programa de Ambientes Verdes Saudáveis em São Paulo criou a figura do agente de proteção ambiental, presente em cada unidade. Este agente ajuda a somar a questão da promoção da saúde à questão da qualidade do entorno da moradia das pessoas e acabam envolvendo muitos agentes comunitários de saúde nestas ações. Outro aspecto do território é a construção de redes entre todos os atores sociais que visem uma ação de desenvolvimento social das comunidades que habitam àquele território. A construção destas redes é uma tarefa importante do gerenciamento da ESF envolvendo as escolas, CRAS (serviço social), serviços de saúde mental e ONGS que atuam na região. Gerenciar na ESF não é gerenciar somente uma unidade de saúde, mas também um território.

Acima destes pilares há o dia a dia das unidades. Acolhimento de quem é cadastrado ou não, agendamento de acordo com as normas dos programas de puericultura, pré-natal, controle de hipertensos e diabéticos dos cadastrados e regulação (a marcação de consultas no sistema de referência a especialista e exames complementares) são processos de trabalho em constante qualificação. A questão do espaço físico (em geral inadequado) e sua manutenção, a garantia do acesso na falta de profissionais para cobrir as vagas existentes, o monitoramento de suprimentos para que não faltem e as mediações de conflitos entre funcionários e entre usuários com funcionários também fazem parte do dia a dia das unidades. Para dar conta destas tarefas a ESF precisa de gerentes qualificados e uma equipe de apoio para garantir esta qualificação.

Cabe salientar que a maturidade do vínculo de uma equipe de saúde da família com seu território varia com o tempo e os profissionais e usuários envolvidos. Nossa experiência indica que no começo, o médico de família sem conhecer seus usuários chega a encaminhar para exames especializados ou consultas com médicos especialistas até 25% da demanda de casos novos. Com o tempo, conhecendo a população de abrangência da unidade, esta demanda cai para até 12%. As consultas vão deixando de terminar com um pedido de exame ou uma prescrição para terminar com um “contrato” de mudança de um hábito não saudável por parte do paciente. Os pacientes poliqueixosos e em sofrimento mental passam a participar de rodas de terapia comunitária, facilitadas por auxiliares de enfermagem devidamente treinadas para tal, que são rituais de escuta e solidariedade. Quando a boca cala o corpo sente – este é o mote da terapia comunitária. Estes rituais de escuta diminuem a demanda a médicos e enfermeiros quando o remédio necessário é atenção e carinho. Outro sinal de amadurecimento é a frequência aos grupos de mães, grávidas, adolescentes, entre outros, que criam uma verdadeira plataforma para outras ações na comunidade. Temos a experiência de atrair outras ONGs para a região para atuar com os grupos de adolescentes, por exemplo. Empresas nos procuram para doações em seus programas de responsabilidade social ou por ocasião do Natal para somar com as ações já em curso nos grupos organizados pelas equipes de saúde da família.

Nem todos os usuários são atendidos pelo modelo da ESF. A nosso ver, em algumas circunstâncias o pronto atendimento é o ideal: 1) trabalhadores jovens que quando precisam do sistema de saúde é para o cuidado de acidentes ou afecções agudas; 2) necessidade de falta em serviço cuja manutenção do pagamento depende de um atestado médico. Em épocas de baixo desemprego o uso deste serviço para atestados médicos é abusivo, contribuindo para aumentar a demanda; 3) mães ansiosas que não tem conhecimento suficiente de como se comportar a qualquer anormalidade da criança. Em casos de necessidade de seguimento de tratamento há um sistema de agendamento eletrônico da consulta na unidade de saúde mais próxima; 4) exercício da medicina de urgência para toda a população. O pronto atendimento em São Paulo é uma estrutura física com concentração de tecnologia, com ambulância para remoção de pacientes, aberta 12 ou 24 horas por dia e durante os fins de semana, o que acaba servindo para desafogar os pronto-socorros de hospitais.

Outra porta de entrada ao sistema único de saúde (SUS) são as unidades básicas que mantêm o modelo tradicional de atenção básica com possibilidade de agendamento direto com o médico clínico, o ginecologista e o pediatra por parte do usuário. Nestas unidades não há população cadastrada por área territorial, não há visitas domiciliares por parte de médicos, não há agentes comunitários de saúde e não há NASF.

O sistema de referência para a ESF, o modelo tradicional e o Pronto Atendimento são os Ambulatórios de Especialidade e os Hospitais. Ampliar a capacidade resolutiva dos ambulatórios de especialidade transformando-os em hospitais-dia é um passo importante para diminuir o gargalo no acesso a intervenções de média complexidade. Esta é um dos aspectos da proposta do “Hora Certa”, capitaneado pela atual administração da Secretaria Municipal de Saúde. A construção de dois novos hospitais municipais e a reativação de leitos hospitalares nos já existentes para as intervenções de alta complexidade faz parte da política de melhoria de acesso à atenção secundária e terciária.

A segunda marca da nova administração será os Centros de Saúde Integrados. O quanto da Estratégia de Saúde da Família terá nestes Centros de Saúde Integrados ainda não sabemos. Só podemos esperar que a ESF, a atenção básica que deu certo para 90 milhões de brasileiros em todos os rincões deste vasto território e já é uma referência mundial, faça parte deste modelo de atenção básica.

Davi Rumel
Medico Sanitarista, Dr em Epidemiologia.
Coordenador ESF/Sul.
Associação Saúde da Família.

1 comment:

Marta Capistrano said...

Oi Davi Rumel!
Faz tempo que te procuro para te escrever!
sou Marta Capistrano.
Vc pode me passar um e-mail seu?
meu e-mai principal é:
martakpistrano@yahoo.com.br
mas também tenho o:
martakpistrano@gmail.com
e no facebook: Marta Capistrano
Um grande abraço e beijo.